Pesquisa busca analisar efeitos da pandemia da Covid-19 na Barra do Ceará

A dona de casa, que iremos chamar de Ana, tem 39 anos, é casada e tem cinco filhos. Durante a pandemia da Covid-19, ela viu parte da família e muitos amigos passando necessidade e sem ter o que comer, por conta do desemprego. “Não dava para cruzar os braços em casa e ficar no isolamento. Muitos de nós só sobreviveu por conta das doações de comida e de máscara. Quem não pegava covid, podia morrer de fome”.

Ana é uma das mulheres que participam da pesquisa, resultado da parceria entre a Universidade Federal do Ceará e a Fiocruz Ceará, que busca analisar os efeitos da Covid-19 em mulheres de uma comunidade de alta vulnerabilidade em Fortaleza. O bairro escolhido foi a Barra do Ceará. Em Fortaleza, a Barra do Ceará foi um dos bairros mais atingidos pela pandemia causada pelo vírus SARS-CoV-2, tendo um dos maiores índices de óbitos registrados na cidade, de acordo com os boletins epidemiológicos da Prefeitura de Fortaleza. A comunidade concentra uma série de serviços prestados em estabelecimentos ou moradias nas regiões mais ricas da cidade, como o bairro Meireles, epicentro da difusão do coronavírus em Fortaleza, por meio dos moradores que viajaram para o exterior ou outro estado do Brasil.

O estudo quer descrever como ocorreu a epidemia da COVID-19 no bairro e a transmissão nas suas famílias e entre seus contatos dentro e fora da sua casa; e como a comunidade se percebeu e se percebe vulnerável à COVID-19 e passível de desenvolver formas de controle da virose. O pesquisador da Fiocruz Ceará, Fernando Carneiro, que trabalha no eixo da Vigilância Popular, junto com a pesquisadora Ana Cláudia Teixeira, explica que a pesquisa se caracteriza como um estudo misto, envolvendo uma coorte, um estudo de rede e um eixo qualitativo que está sendo realizado desde outubro de 2020 e seguirá até setembro de 2023 (36 meses). “No eixo qualitativo coletamos dados para entender os comportamentos do grupo. O roteiro de entrevista aborda desde aspectos sociais e acesso à informação da comunidade sobre a Covid-19 até a violência no cotidiano urbano, segregação espacial, passando pela saúde física e mental dos indivíduos. São dados sigilosos, que não podem ser compartilhados e estamos realizando essas entrevistas no Cuca, um espaço considerado neutro pela comunidade”, explica o especialista. As participantes também passam por coleta de sangue para exame sorológico e realizam o teste de swab nasal e da orofaringe para realização de RT-PCR para pesquisa do SARS-CoV-2 de todas as mulheres que integram a coorte e que comparecerem a uma das unidades de saúde participantes nesta terceira onda do estudo. 

A pesquisa é liderada pela pesquisadora da UFC, Ligia Kerr, e faz parte de um grande estudo das arboviroses Dengue, Zika e Chikungunya em Fortaleza e de seus contactantes intradomiciliares e não domiciliares, iniciada em 2016. “Na primeira epidemia da zika no país ocorreram muitos casos de microcefalia e nós queríamos entender o quanto esta epidemia atingiu populações de mulheres vulnerabilizadas como estas que estamos estudando. Entrevistamos cerca de 1500 mulheres na primeira onda e 1270 na segunda. Ao todo, 44% delas tiveram zika, mais de 80% tiveram dengue e cerca de 36% sofreram com a Chikungunya. Quando veio a Covid-19, vimos a necessidade de ampliar os estudos e os parceiros e chamamos os especialistas da Fiocruz Ceará para contribuir com a coleta e interpretação dos dados”, ressalta Kerr.

A pesquisa foi aprovada no Edital INOVA/Funcap/Fiocruz Ceará que visa apoiar atividades de pesquisa na área de saúde que apresentem possibilidade de geração de conhecimento ou produtos e serviços que contribuam para avançar na compreensão da atual pandemia de Covid-19. Com os dados coletados, será possível construir as rotas mais prováveis de transmissão da COVID-19 no bairro e possivelmente em outras localidades de Fortaleza. Além do levantamento feito por meio da população, a pesquisa também busca identificar os recursos locais e governamentais que a comunidade conta para enfrentar a epidemia e irá explorar a visão dos profissionais de saúde que trabalham na área e sua relação com a comunidade. 

Aqui tem sinal de vida 

A médica da família, Tatiana Fiuza, trabalhou durante anos atendendo a comunidade das Goiabeiras, no Morro do Santiago, localizado na Barra do Ceará e se tornou parceira do estudo, intermediando e explicando a importância da pesquisa para as moradoras da região. 

Apesar de ter uma das vistas mais belas da cidade, a população do Morro do Santiago vive em meio ao tráfico de drogas, disputa de gangues, moradias inadequadas e poucas oportunidades de educação e lazer. O trabalho desenvolvido na Unidade Básica de Saúde Lineu Jucá e o vínculo criado com a comunidade, deu origem ao projeto “Aqui tem sinal de vida.” Tatiana explica que, por meio de uma abordagem multidisciplinar, o projeto iniciou acolhendo crianças e adolescentes, com atividades socioculturais sempre alinhadas com a promoção à saúde. “Há doze anos conseguimos pactuar com o Cuca Che Guevara, a UBS Lineu Jucá e com a UFC, um ambulatório para atender a comunidade jovem do morro, pois os moradores de lá não podem ser atendidos no Posto de Saúde, por conta da disputa de gangues pelos territórios. Toda semana, atendemos a população por meio de um projeto de extensão da Faculdade de Medicina. Então, além de cuidar da comunidade, estamos formando médicos humanistas que realmente conhecem as necessidades da população”, ressalta a médica.

Compartilhe.

Tags: , , , .