Pesquisa-ação reafirma identidade indígena com material educativo inovador
As áreas de Saúde da Família e Saúde e Ambiente da Fiocruz Ceará, por meio do Coletivo SerPovos, desenvolveram uma pesquisa-ação-participativa no território indígena (TI) Serra das Matas, que engloba os municípios cearenses de Boa Viagem, Monsenhor Tabosa, Tamboril e Santa Quitéria. Os pesquisadores trabalharam com 34 aldeias dos movimentos Potygatapuia e Tabajara da Serra das Matas entre abril de 2021 e março de 2022 e produziram, em conjunto com a comunidade, um amplo diagnóstico da situação de saúde organizado em materiais educativos e bibliográficos.
Segundo a coordenadora da pesquisa, Vanira Matos Pessoa, o projeto que nasceu no período da pandemia de Covid-19 tinha o intuito de conceber instrumentos úteis e inovadores às práticas dos profissionais de saúde e comunidades indígenas. As reflexões surgiram na Teia Saberes e Práticas em Saúde, do coletivo SerPovos, que significa Saúde, Cuidado e Ecologia dos Saberes. E daí, foi construído o objetivo principal da pesquisa, que buscou promover uma ruptura com a invisibilidade dos indígenas, reafirmando sua identidade, memórias e práticas ancestrais de cuidado em saúde, em diálogo com os desafios atuais de acesso à saúde.
A demanda veio da própria comunidade, a partir de experiências como “os homens da porteira”, uma iniciativa de Vigilância Popular em Saúde que consistia em colocar pessoas vigiando a porteira que dava acesso à comunidade Mundo Novo, em Monsenhor Tabosa, para protegê-la da Covid-19. “Isso aconteceu porque uma agente comunitária de saúde indígena faleceu por Covid. Então, eles nos procuraram para dizer da invisibilidade que sofriam, que não havia pesquisa nem o olhar da sociedade para a comunidade e que estavam inventando formas de enfrentar a pandemia e sobreviver há muitos séculos. Então, nós construímos conjuntamente os objetivos e o processo da pesquisa”, explicou Vanira.
A pesquisadora ressalta que a ideia central foi reafirmar a identidade e a memória indígenas, resgatar valores da cultura, dos rituais de cura e romper com a invisibilidade, além de promover a saúde e um amplo diagnóstico do modo de vida e saúde. “O povo do Ceará saber que eles existem no semiárido do Ceará e na Serra das Matas, assim como o Brasil e o mundo tomarem conhecimento e respeitar, valorizar e trabalhar junto”, sublinhou ela acrescentando que, com esse propósito, foram realizadas rodas de conversas on-line com benzedeiras, mulheres indígenas, lideranças dos movimentos, agentes indígenas de saúde, agentes indígenas de saneamento e educadores. Quando a pandemia apresentou melhoria nos indicadores, foram realizadas visitas às aldeias, aos quintais de plantas medicinais e lugares sagrados, além de diversas rodas de conversas e oficinas.
Conta a pesquisadora que os indígenas fizeram uma crítica aos materiais disponibilizados pelas instituições, que muitas vezes não têm nenhuma representatividade da sua cultura indígena. Então o desafio foi produzir materiais que dialoguem com os jovens, as crianças, educadores e lideranças. “E nesse processo de romper com a invisibilidade, a juventude teve um papel fundamental, participando da atividade da produção de peças comunicativas e educativas a partir do seu olhar sobre a cultura indígena, sobre o modo de vida indígena, sobre ser indígena no semiárido e ao mesmo tempo se comunicar com a sociedade em geral’.
O coletivo, que envolveu indígenas, movimentos sociais, profissionais de saúde, de comunicação, estudantes e pesquisadores, produziu conteúdo audiovisual e impresso (vídeos, fotografias, desenhos, cartilhas) concebidos a partir de oficinas realizadas no próprio território e distribuídos nas Unidades Básicas de Saúde e escolas da comunidade. “É uma outra dimensão de material didático, tem a própria letra da população, as fotografias e os desenhos produzidos por eles mesmos”.
Segundo a pesquisadora, o material produzido está sendo trabalhado com os 700 alunos da escola Mundo Novo, que fica numa região de difícil acesso. Também os vídeos são exibidos nas TVs das UBS da região, assim como as cartilhas nas salas de espera. “Eles colocaram que têm acesso ao profissional de saúde, mas o profissional não os vê, não os cura. Reforçaram muito a necessidade do diálogo da ciência com o saber ancestral. Isso foi muito forte para nós, enquanto pesquisadores, e buscamos trabalhar um pouco essa dimensão da tradução intercultural, que seria facilitar a promoção do entendimento do diálogo técnico-científico com esse diálogo dos povos indígenas e toda a sua cosmovisão”, enfatizou Vanira.
A pesquisadora explica que essa é a ideia da pesquisa-ação-participativa: produzir conhecimentos compartilhados no processo e, a partir disso, os próprios participantes desenvolverem a autonomia em propor ações, planejar e implantar estas ações, conforme a dinâmica local, contextualizada às necessidades das comunidades. Nessa perspectiva, Vanira afirma que o propósito é seguir com o trabalho em outras comunidades indígenas, abordando questões como o direito à saúde indígena, plantas medicinais, espiritualidade numa dimensão intersetorial de diálogo com os saberes tradicionais e pouco abordada pelos subsistemas de atenção à saúde.
Também na Fiocruz Ceará, em parceria com a Coordenação de Ambiente, Atenção e Promoção da Saúde, um grupo de pesquisadores interessados em atuar na área de saúde indígena deve ser organizado para dar continuidade às pesquisas.
Esta pesquisa-ação foi desenvolvida com apoio da Vice-Presidência de Ambiente, Atenção e Promoção da Saúde (VPAAPS) da Fiocruz, em projeto aprovado no Edital de Saúde Indígena, com foco no fortalecimento do Subsistema de Atenção à Saúde Indígena (SasiSUS) e da Rede Programa de Políticas Públicas e Modelos de Atenção e Gestão à Saúde (PMA) da Vice-Presidência de Pesquisa e Coleções Biológicas (VPPCB).
Por: Sheila Raquel, com edição de Carolina Campos.
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