Caravana da Fiocruz Ceará realiza pesquisa-ação em defesa da vida e dos territórios das populações do Campo, Florestas e Águas
Colaborou: Francisco Barbosa
Pesquisadores da Fiocruz Ceará, integrantes do Participatório em Saúde e Ecologia dos Saberes, estão em caravana visitando as experiências em Vigilância Popular da Saúde cadastradas no projeto que une organizações comunitárias, serviços públicos de saúde e instituições de pesquisa atuando na defesa da vida de populações vulnerabilizadas no Ceará. Ao todo, dez experiências foram selecionadas, sendo cinco no Ceará e outras cinco divididas uma para cada região do Brasil.
As primeiras atividades foram desenvolvidas com o Povo Anacé da Terra Tradicional, do município de Caucaia no contexto da luta pela demarcação do território e preservação do Lagamar do Cauípe. A segunda parada foi na Chapada do Apodi, nos municípios de Tabuleiro do Norte e Limoeiro do Norte, onde comunidades agroecológicas vem sendo atingidas pelos impactos da ampliação das atividades do agronegócio na região. A terceira parada da caravana foi em Aracati, mais precisamente no Quilombo do Cumbe, onde a Vigilância pPopular da Saúde, Ambiente e Trabalho (VPSAT) identifica problemas e impactos causados pela extração de água pela CAGECE no território, o avanço da carcinicultura e a chegada de parques eólicos, cada vez mais comuns no litoral leste do Ceará.
Na programação da Pesquisa-acão as visitas acontecem em dois dias. No primeiro, o grupo de trabalho faz um reconhecimento e uma vivência do território dialogando com a comunidade para reconhecer os indicadores de vigilância popular. No dia seguinte, acontecem apresentações, oficinas e debates com a visão dos atores envolvidos; e o compartilhamento de experiências entre pesquisadores e participantes do movimento sobre as práticas de Vigilância Popular da Saúde, Ambiente e Trabalho (VPSAT). A última atividade consiste na elaboração de um Plano de ação para fortalecer as iniciativas que já são desenvolvidas pelos moradores de cada região. Para a pesquisadora da área de Saúde e Ambiente da Fiocruz Ceará, Ana Cláudia Teixeira, o contato com a comunidade nos territórios possibilita o conhecimento das potencialidades, necessidades sociais e de saúde e dos principais desafios enfrentados pelas populações do campo, florestas e águas. “A gente quer conhecer todas as vivências e compreender o modo de vida e de trabalho das comunidades promovendo um diálogo de saberes entre o saber popular e o saber da academia. A gente busca esse diálogo e as comunidades participam ativamente das pesquisas, não somente refletindo sobre os problemas, mas também sobre as potencialidades que elas têm como artesanato, pesca artesanal, tecnologias sociais e quintais produtivos”, ressalta a pesquisadora.
Caravana na Associação Quilombola do Cumbe
Situada no litoral leste do Ceará, a comunidade do Cumbe abriga famílias remanescentes de quilombos e se localiza ao lado da praia da Canoa Quebrada, um dos pontos turísticos mais movimentados do estado. Limitada ao mar por dunas que abraçam o território quilombola, a área está envolta também por um mangue que ajuda a manter o povoado por meio da pesca, mariscagem e da cata de caranguejo, principais fontes de sustento local.
A Associação Quilombola da Cumbe existe há 25 anos. A pescadora Cleomar Ribeiro, que está como presidente da Associação, disse que a cata do caranguejo ficou completamente comprometida nos anos 2000, deixando as famílias literalmente sem renda. Foi a partir desse cuidado com o ecossistema que alimenta todos da Comunidade que surgiu a Associação. Ela explica que para quem vive no território desde criança como ela, é possível ver as drásticas alterações da natureza. “A gente se reúne aqui para empoderar a comunidade sobre as lutas que ainda precisaremos lutar. Você viu que tem criança participando? São elas quem vão conscientemente defender nosso lugar de origem”, ressalta Cleomar.
Ronaldo da Silva, conhecido por muitos como, o professor do mar da comunidade do Cumbe, é nascido e criado no mar. Trabalha na pesca durante o inverno e no verão cata caranguejo no mangue. Ele é vice-presidente da Associação Quilombola da Cumbe e aponta como principal desafio a luta pelo território. Ronaldo explica que cerca de 180 famílias, 110 se reconhecem como Quilombola. Segundo o vice-presidente da Associação, os empreendimentos avançam em várias direções e comprometendo fortemente a comunidade. “Eles chegam falando em desenvolvimento e renda, mas com o passar do tempo, a carcinicultura, por exemplo, secou o mangue e praticamente não encontramos mais siris por lá, os caranguejos estão fracos e cegos. Já o Parque Eólico está instalado no meio da duna, no aquífero que abastece o Aracati e comprometeu o lençol freático. Hoje já não temos água com facilidade e a gente nem tem mais livre acesso para pescar”, contou.
O projeto
No Ceará, cinco experiências cadastradas foram visitadas. Entre elas estão a de Formação em agentes populares de saúde do campo no muncípio de Miraíma, no Assentamento Pedra Branca do MST; Vigilância popular da saúde, ambiente e trabalho frente aos problemas/impactos causados pelos empreendimentos econômicos: CAGECE, carcinicultura, eólicas, que atuam no Quilombo do Cumbe, localizado na cidade de Aracati; Pescadoras/res artesanais em defesa da vida e do rio Jaguaribe, com atuação nos municípios de Fortim e Aracati; Luta pela demarcação do território e preservação do lagamar do Cauípe, no município de Caucaia; Vigilância Popular no Vale do Jaguaribe, nas cidades do Limoeiro do Norte articulada pelo Movimento M21. Junta-se a essa experiência, a da Comunidade que Sustenta a Agricultura (CSA) – Meu quintal em sua cesta, que atua no Território da Chapada do Apodi, município de Tabuleiro do Norte, envolvendo as Comunidades: Saco Verde, Sítio Raimundo Antônio, Santo Estevão, Baixa do Juazeiro, Santo Antônio dos Alves. Somaram-se a experiência para fortalecê-la, agricultores do Acampamento Zé Maria do Tomé (Limoeiro do Norte) e da Comunidade Caatingueirinha (Potiretama) todas apoiadas pela Cáritas. No entanto, é em Tabuleiro do Norte que a experiência é desenvolvida, organizada e gestada.
No âmbito nacional são elas: Vigilância popular em saúde e ambiente em áreas próximas de complexos siderúrgicos, nos estados do Rio de Janeiro e Maranhão; Promoção de territórios saudáveis e sustentáveis no Mato Grosso; Em defesa do direito à vida e contra os agrotóxicos no Assentamento Nova Santa Rita do MST, no estado do Rio Grande do Sul; e Teia de Educação Ambiental e Interação em Agrofloresta, em Parintins no estado do Amazonas.
O projeto da Fiocruz Ceará foi uma das seis propostas selecionadas para pesquisas interdisciplinares voltadas para as Emergências em Saúde Pública da Fiocruz pelo Edital Inova. Ao todo, 100 propostas foram enviadas com ênfase em sistemas de vigilância participativa, controle e prevenção de doenças endêmicas ou de surtos prévios na zona de desastre e saúde nas fronteiras do país, Vigilância em Saúde do Trabalhador, Avaliação da implementação da Política Nacional de Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora, Perfil nacional da cadeia de substâncias químicas no Brasil, e Ondas de Calor e Saúde Humana.
O pesquisador Fernando Carneiro, coordenador do projeto, explica que foram meses de levantamento de informações e cadastros das experiências em Vigilância Popular da Saúde, Ambiente e Trabalho, até a escolha das 10 experiências que estão sendo visitadas e acompanhadas pela caravana do Participatório. Segundo o pesquisador, a primeira etapa foi revisar a literatura científica com a leitura de mais de 3 mil artigos sobre o tema para avançar nas ideias sobre os conceitos e métodos de Vigilância Popular. “Além disso, antes de montarmos o projeto nos reunimos com os principais representantes dos movimentos populares dos campos, florestas e águas do Ceará para elaborar a metodolologia da pesquisa. Nossa ideia sempre foi nos desafiar a não pesquisar sobre ou para as comunidades, mas sim com elas porque acreditamos que ao propiciarmos o diálogo entre o conhecimento científico e o popular, podemos contribuir para pontecializar o protagonismo das comunidades na defesa de seus territórios e da vida”, explica Fernando.
No final do projeto, será produzido um site com um guia nacional de VPSAT para o SUS, contendo vídeos e conteúdos de interesse para os interessados no tema.
A luta do Povo Anacé na Aldeia do Cauípe
Além da luta por terra, o povo Anacé também luta por saúde, reconhecimento de direitos e pelo acesso à água de qualidade. Paulo Anacé, liderança indígena da aldeia Cauípe afirma que mesmo tendo o rio Cauípe no território, as aldeias do povo Anacé vivem sem direito à água, pois o recurso hídrico do rio acaba indo para o Complexo Industrial e Portuário do Pecém. “Temos bastante água, bastante recursos naturais, mas não podemos usufruir desse direito. A água do nosso rio vai para o Complexo Industrial do Pecém, mas não vai para as famílias. Que progresso é esse? Para quem realmente é esse progresso?”
Maria da Paz, indígena do território Anacé no Planalto Cauípe afirma que, “o que a gente vê hoje é que nós aqui, a população do Planalto Cauípe e Pitombeiras não temos água, e se tiver é porque tem uma cacimba lá dentro do seu terreno, porque senão vai ter que comprar de carro pipa ou tem que pedir ajuda de outras pessoas, ou ir até o rio, se arriscando muitas vezes. Usar a água do rio para beber, ou lavar uma roupa, lavar uma louça. Isso é muito difícil para as pessoas aqui”.
Zenaide Lima da Costa Felix, do Planalto Cauípe é uma das pessoas que precisam do rio para uso pessoal como lavar roupa e louça, por exemplo. Ela afirma que o carro pipa da prefeitura de Caucaia não chega a sua casa, o que dificulta ainda mais o seu acesso à água. “Nos sentimos injustiçados. Um descaso total. Do rio para a minha casa dá uns 300 metros e vemos a água indo embora e não podemos usufruir na nossa casa. Um descaso total.”
Maria esteve presente na oficina e afirma que o momento foi de muita importância para ela e para a luta do povo Anacé. “Hoje eu tive um aprendizado muito grande. Essa parceria com a Fiocruz veio trazer um aprendizado maior e a gente fica sabendo que não estamos só, ou seja, temos pessoas que podem nos ajudar a sermos conhecidos”.
Sobre a vigilância popular, Maria da Paz explica que o termo não é tão comum de ser falado, muito menos de ser ouvido, mas a atividade realizada pelo Participatório mostrou que o povo Anacé faz a sua vigilância de alguma forma. “Participar dessa oficina foi muito importante, até porque a gente sabe que no decorrer da nossa vida, no nosso cotidiano a gente tem pessoas que estão acompanhando para ver o que está certo, o que está errado, que caminho vamos seguir para que a gente não tenha os nossos direitos violados. Também sabermos quais são os nossos direitos dentro da sociedade e fazer tudo de acordo com o que nos é certo”.
Marcelo Anacé explica algumas das formas que o povo Anacé faz a vigilância popular da retirada da água do rio Cauípe. De acordo com ele, alguns dos indicadores são: quando a água das cacimbas está baixa, o aparecimento dos troncos das carnaúbas e a vistoria da régua de medição do volume da água localizada no próprio rio Cauípe. Quando esses indicadores começam a dar sinais de que está sendo retirada mais água do que o devido, as lideranças indígenas acionam imediatamente a Companhia de Gestão dos Recursos Hídricos (COGERH).
Marcelo informa que a luta pela água não é de hoje. Em 2018, por exemplo, o povo Anacé fez um acampamento às margens do rio com o objetivo de alertar e tentar barrar a retirada em excesso da água e reivindicar a água do rio para o território. Marcelo lembra que forças armadas apareceram no local e desfizeram o acampamento, mas afirma que a luta continua até hoje.
Zenaide acredita que essa realidade irá mudar, mas para isso ela afirma que é preciso a participação de todos e uma maior visibilidade à luta do povo Anacé. “A nossa expectativa é que essa questão possa ser resolvida, que a gente possa ter visibilidade, que essas informações possam chegar mais longe e as pessoas responsáveis possam fazer caso. A luta continua todo dia”.
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