Pesquisadores da Fiocruz Ceará publicam artigo analisando a importância da vigilância popular da saúde frente a Covid

Os pesquisadores da Fiocruz Ceará, Fernando Ferreira Carneiro e Vanira Matos Pessoa escreveram artigo para a seção de notas especiais da Revista Trabalho, Educação e Saúde publicado em agosto de 2020. O documento intitulado “Iniciativas de organização comunitária e Covid-19: esboços para uma vigilância popular da saúde e do ambiente”, analisa a necessidade de criar métodos, estratégias e iniciativas que possibilitem que a vigilância sobre a saúde e o ambiente contribuía na solução de problemas e necessidades de forma horizontal, participativa, democrática e cientificamente qualificada, incluindo todos os povos.

Os autores também fizeram uma atualização das informações, com questionamentos e ações atuais. Fernando Carneiro gravou um vídeo analisando as questões da Covid-19 no contexto das populações mais vulnerabilizadas e o reconhecido papel da idade e das comorbidades durante a pandemia. 

Além disso, o pesquisador lembra que no Brasil as populações do campo, floresta e águas são historicamente uma das mais invisibilizadas para as políticas públicas. Esse fator, associado às ações equivocadas, insuficientes e negligentes do governo federal no controle da pandemia, nos remete à questão: como a Covid-19 está atingindo as populações do campo, floresta e águas do Brasil?

Confira o artigo na íntegra abaixo:

A Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou, em 30 de janeiro de 2020, que o surto da doença causada pelo novo coronavírus (Covid-19) constituía uma Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional – o mais alto nível de alerta da Organização, conforme previsto no Regulamento Sanitário Internacional. O primeiro caso confirmado no Brasil foi no dia 26 de fevereiro e a primeira morte no dia 12 de março de 2020, segundo o Ministério da Saúde. No dia 27 de janeiro de 2021 contabilizamos nove milhões de casos confirmados e duzentos e vinte mil mortos, respondendo por quase 10% dos mortos por Covid-19 no mundo  ocupando o segundo lugar em números absolutos depois dos Estados Unidos da América.

Algumas questões sobre a Covid-19 ainda estão em aberto tais como: existem populações mais vulnerabilizadas além do reconhecido papel da idade e das comorbidades? 
Passados um ano do início da pandemia, estudos recentes têm indicado que a morbidade e a mortalidade pela Covid-19 no mundo é muito pior para os indígenas, migrantes, negros e outras vítimas de racismo, discriminação e marginalização (Bump et al. 2021). No Brasil está ocorrendo um apagão inédito de dados oficiais, jamais visto em relação a outros agravos, sobre a morbimortalidade pela Covid-19 no âmbito do Ministério da Saúde. Essa omissão fez com que os veículos de comunicação do Brasil criassem um consórcio para utilizar os dados das secretarias estaduais de saúde e informar a sociedade brasileira diariamente de forma transparente os dados referentes aos números de casos e de mortes da Covid-19. 

No Brasil as populações do campo, floresta e águas são historicamente uma das mais invisibilizadas para as políticas públicas (Caneiro et al. 2017). Esse fator, associado às ações equivocadas, insuficientes e negligentes do governo federal no controle da pandemia, nos remete à questão: como a Covid-19 está atingindo as populações do campo, floresta e águas do Brasil? O Brasil “rural” tem populações em condições de isolamento geográfico no semiárido e na Amazônia, expostas a riscos e agravos de saúde radicalmente diferentes das populações urbanas. Há um modo de produzir que vai desde a pesca artesanal até a agricultura, o extrativismo, a mineração, que expõem essas populações a um conjunto de agravos específicos, que precisam ser conhecidos e cuidados pela Vigilância da Saúde e Atenção Primária de Saúde. 

No contexto da pandemia pela Covid-19 existe uma grande lacuna de análise de dados sobre a incidência da doença sobre essas populações vulnerabilizadas. A Vigilância Popular da Saúde e Ambiente surge como um grito dos territórios frente ao negacionismo e a omissão do Estado, representado mais recentemente e agudamente na necropolítica genocida posta em curso pelo governo federal liderada pelo presidente da República, conforme já analisado por Ventura (Brum, 2021).

Um exemplo emblemático da importância do que estamos denominando como vigilância popular da Covid 19 se refere a tragédia da pandemia nos povos indígenas do Brasil. Do início da pandemia até o dia 22 de janeiro de 2021, o painel Quarentena Indígena (2020) organizado pelas próprias entidades indígenas como a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil, apontava que 161 povos haviam sido atingidos, totalizando 929 mortos e 46.508 casos confirmados da Covid-19. Esses dados representam os números de mortos contabilizados pela Secretaria de Saúde Indígena do Ministério da Saúde (Sesai/MS) e as subnotificações computadas pelo Comitê Nacional de Vida e Memória Indígena (Emergência indígena, 2020). Entretanto, na página da Sesai/MS estão somente 531 óbitos confirmados (Brasil, 2021), quase a metade do que foi encontrado pelo Comitê Nacional de Vida e Memória Indígena.

Essa disparidade entre os dados oficiais e os da “vigilância popular” podem ser explicados pela não contabilização dos indígenas que vivem fora de Terras Indígenas homologadas por parte da SESAI/MS, o que inclui tanto citadinos como populações que aguardam a finalização do longo processo de demarcação de suas terras. A não visibilização das informações pela vigilância em saúde oficial do governo federal desse grupo de indígenas decreta a sua não existência ou serve para minimizar a omissão de ações efetivas nessa tragédia, segundo os dados da Plataforma de monitoramento da situação indígena na pandemia do novo coronavírus (2021).

Uma conquista importante das populações do campo, floresta e das águas diante da pandemia foi a inclusão dos indígenas aldeados, populações tradicionais ribeirinhas e quilombolas na prioridade da fase 1 na primeira versão do Plano Nacional de Operacionalização da Vacinação Contra a Covid-19 (Brasil, 2020a,b). Entretanto, em um novo documento do MS do dia 19 de janeiro de 2021 (Ministério Brasil, 2021) os quilombolas e populações ribeirinhas desapareceram da prioridade da fase 1, repercutindo imediatamente na priorização de estados e municípios, o que gerou manifestações e questionamento por parte do Ministério Público Federal e do STF ao Ministério da Saúde. Além disso, o movimento indígena está lutando pela inclusão dos não aldeados ainda na fase um do plano nacional de vacinação.

Novas iniciativas que envolvem movimentos camponeses como o Movimento do Trabalhadores Rurais sem Terra (MST) e organizações das favelas das cidades estão formando agentes populares de saúde (Agentes Populares de Saúde, 2021; Mãos…, 2021; MST, 2021) que têm surgido como formas de organização comunitária e reação em defesa da vida e da saúde para dar conta de enfrentar a Covid-19 num ambiente em que várias injustiças se combinam frente a uma política genocida. O avanço do desmatamento e das queimadas na região amazônica, os ataques do governo federal às populações indígenas e o desmantelamento de agências governamentais, como o Ibama e o ICMBio, motivaram a apresentação de nova denúncia contra o presidente brasileiro ao Tribunal Penal Internacional (TPI) de Haya na Holanda. Feita em nome dos caciques Raoni Metuktire e Almir Suruí, a solicitação pede que a procuradora do TPI, Fatou Bensouda, abra inquérito preliminar para investigar a responsabilidade do presidente da república e membros de seu governo . 

Do ponto de vista dos territórios, das comunidades, e de uma sociedade tão desigual, como a sociedade brasileira, é fundamental consolidar uma política de saúde como o SUS para as populações vulneráveis. Então, as iniciativas de vigilância popular da saúde e ambiente, ao desvelar as lacunas, as fragilidades, e, apontar conceitos, estratégias e metodologias elaboradas por grupos populares fortalecem a participação e o envolvimento das pessoas no processo saúde-doença-cuidado. O conceito de saúde do MST pode nos ajudar a compreender melhor esse processo: “saúde é a capacidade de luta diante de tudo que nos oprime” (Silva e Prada, 2019).

O vídeo pode ser acessado aqui

Referências

BUMP, Jesse B. et al.  Political economy of covid-19: extractive, regressive, competitive. BMJ, v. 372, n. 73, 2021. DOI: 10.1136/bmj.n73.
MÃOS solidárias. Campanha de diversas organizações, voluntários e movimentos populares no enfrentamento ao coronavírus através da solidariedade e pela vida do povo pernambucano. Disponível em: https://www.campanhamaossolidarias.org/ quem-somos. Acesso em: 16 jan. 2021. 

BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento de Imunização e Doenças Transmissíveis. Coordenação-Geral do Programa Nacional de Imunizações. Plano nacional de operacionalização da vacinação contra a Covid 19. 1. ed.  Brasília: MS, 2020a. Disponível em: https://www.gov.br/saude/pt-br/media/pdf/2020/dezembro/16/plano_vacinaca…. Acesso em: 22 jan. 2021

BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento de Imunização e Doenças Transmissíveis. Coordenação-Geral do Programa Nacional de Imunizações. Informe_técnico:  campanha nacional de vacinação contra a Covid-19. Brasília: MS, 2021b. Disponível em: https://www.conasems.org.br/wp-content/uploads/2021/01/Informe_Tecnico_V…. Acesso em: 22 jan. 2021.

BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Saúde Indígena. Boletim epidemiológico da SESAI. Disponível em: http://www.saudeindigena.net.br/coronavirus/mapaEp.php. Acesso em: 22 jan. 2021.

BRUM, Elaine. “Há indícios significativos para que autoridades brasileiras, entre elas o presidente, sejam investigadas por genocídio”. El País. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2020-07-22/ha-indicios-significativos-p…. Acesso em: 01 fev. 2021.

CARNEIRO, Fernando. F.; PESSOA, Vanira M. (Org.); TEIXEIRA, Ana C. A. (Org.) . Campo, Floresta e Águas: tecendo práticas e saberes de saúde. 1. ed. Brasília: Editora UnB, 2017. v. 1. 464 p.

EMERGÊNCIA indígena. Isso é uma emergência: COVID 19: garimpo ilegal: desmatamento. Disponível em: http://emergenciaindigena.apib.info. Acesso em: 30 jul. 2020.

MOVIMENTO DOS TRABALHADORES SEM TERRA (MST). Agentes Populares de Saúde do Campo fortalecem a luta contra a Covid-19 no PR. dez. 2020. Disponível em: https://mst.org.br/2020/12/30/agentes-populares-de-saude-do-campo-fortal…. Acesso em: 16 jan. 2021. 

NUNES, João A.; LOUVISON, Marília. Epistemologias do Sul e descolonização da saúde: por uma ecologia de cuidados na saúde coletiva. Saúde e Sociedade, São Paulo,  v. 29, n. 3, e200563, 2020 . DOI: 10.1590/s0104-12902020200563.

SILVA, Camila G.; PRADA, Clara A. Saúde no campo: caminhos percorridos pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Saúde e Debate, Rio de Janeiro, v. 43, n. esp. 8, p. 50-65, 2019. DOI: 10.1590/0103-11042019s804.

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