Guia de vigilância popular em saúde e emergências climáticas articula Fiocruz, SUS, OMS e territórios

2ª oficina em Eusébio reuniu gestores, pesquisadores, lideranças indígenas e movimentos sociais para aprimorar instrumento prático de resposta a secas e enchentes

Em um dia intenso e mobilizador, em 26 de agosto de 2025, a Fiocruz Ceará sediou a 2ª Oficina de Planejamento Participativo da pesquisa “Vigilância Popular em Saúde como estratégia potencializadora das ações dos sistemas de saúde frente às emergências de saúde pública associadas às mudanças climáticas”. O encontro reuniu representantes do Sistema Único de Saúde (SUS), da Organização Mundial da Saúde (OMS), pesquisadores, lideranças indígenas e movimentos sociais, num total de 64 participantes, para lapidar a versão preliminar de um Guia de Vigilância Popular em Saúde para Emergências Climáticas, com foco em secas e inundações.

A iniciativa é organizada pelo Participatório em Saúde e Ecologia de Saberes/Fiocruz Ceará e pela Coordenação de Vigilância em Saúde e Laboratórios de Referência (da Presidência da Fiocruz), com apoio da Alliance for Health Policy and Systems Research/OMS, do Programa de Emergências em Saúde/OMS e do Ministério da Saúde (Secretaria de Vigilância em Saúde e Ambiente e Secretaria-Executiva). A 1ª oficina, em 11 e 12 de fevereiro, havia aprimorado o desenho metodológico da pesquisa e mapeado como a vigilância popular pode fortalecer o SUS diante de eventos extremos – (Clique aqui e assista o documentário)

A mesa de abertura, em formato híbrido, foi presidida por Tânia Fonseca, coordenadora de Vigilância em Saúde e Laboratórios de Referência da Fiocruz, e Fernando Carneiro, pesquisador em Saúde e Ambiente e Coordenador do Participatório em Saúde e Ecologia de Saberes da Fiocruz Ceará, e reuniu Maria Rocineide Ferreira da Silva, da Coordenação Geral de Articulação Interfederativa e Participativa da Secretaria Executiva do Ministério da Saúde; Vanderson Gomes de Brito, indígena do povo Huni Kui e assessor técnico da Secretaria de Saúde Indígena do Ministério da Saúde; Paulo Gadelha, presidente da Fiocruz entre 2009 e 2016 e coordenador da Agenda 2030 Fiocruz; Antonio Silva Lima Neto, secretário Executivo de Vigilância em Saúde da Sesa-CE; Edenilo Barreira, diretor do Departamento de Emergências em Saúde Pública do Ministério da Saúde. Estiveram on-line, Guilherme Werneck, diretor do Departamento de Ações Estratégicas de Epidemiologia e Vigilância em Saúde e Ambiente; Carlos Corvalán, da Organização Mundial da Saúde; Graciela Stornini, do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra/RS; e Valcler Rangel, vice-presidente de Ambiente, Atenção e Promoção da Saúde da Fiocruz.

Território como ponto de partida

A tônica do dia foi transformar conhecimento dos territórios em política pública. “Nossa missão principal é traduzir o conhecimento do território em política pública. A resposta está no território, cabe a nós formatá-la, respeitando a pluralidade de povos e contextos”, afirmou Vanderson Gomes, indígena do povo Huni Kui. “Produzir e sustentar territórios saudáveis passa por entender diferenças culturais e modos diversos de fazer saúde.”

Na abertura, Maria Rocineide Ferreira sublinhou a centralidade da educação popular e da corresponsabilidade. “Vigiar sem punir e chegar antes: esse é o papel de uma vigilância construída com as comunidades, por meio de alianças entre diversos povos e instâncias do Estado. Encontros como este só fazem sentido quando produzem liberdade e pertencimento.”

Na perspectiva estadual, Antonio Silva Lima Neto reforçou a tradução das diretrizes em ação. “É uma alegria estar aqui com tantos colegas. Este tema precisa ser abraçado por todas as instâncias da saúde pública. Levo desta oficina resultados e proposições que podemos escalar no âmbito da Secretaria da Saúde do Ceará e também dialogar no plano nacional.

O desafio agora é de implementação. “A oficina oferece caminhos concretos. Cabe a nós criar as condições para que se convertam em estratégia de governo e cheguem aos territórios, fortalecendo a vigilância popular em saúde em todo o estado”, ratificou o secretário Executivo de Vigilância em Saúde da Sesa-CE .

Participação como eixo da vigilância

Para a Fiocruz, o desenho participativo não é ornamento, é condição. “No Brasil não há vigilância em saúde sem participação popular. Nosso maior valor está na força da sociedade civil organizada: povos indígenas, quilombolas, comunidades ribeirinhas e urbanas, e no diálogo entre saberes acadêmicos e saberes dos territórios”, disse Valcler Rangel. Tania Fonseca também reforçou essa visão da Presidência da Fiocruz e apontou como uma oportunidade estratégica o aprimoramento dessa nova modalidade de vigilância aplicada às emergências de saúde pública.

Do lado do Ministério da Saúde, a priorização do tema vem acompanhada de diretrizes operacionais. Edenilo Barreira destacou a consolidação de uma agenda que olha para detecção precoce de possíveis emergências e a ampliação de parcerias em vigilância de base comunitária.“Estamos fortalecendo estratégias protetoras e trabalhando com redes parceiras do Brasil e da região para dar escala e capilaridade às experiências.”

Já Guilherme Werneck apontou que a vigilância popular virou prioridade. “É uma oportunidade de aproximar gestão, academia e território, superar a visão biomédica hegemônica e enfatizar processos históricos, sociais e ambientais. Nosso compromisso é apoiar formação e educação permanente, como preconiza a Política Nacional de Vigilância em Saúde (PNVS), para democratizar a saúde.”

A oficina também projetou o debate internacional. Carlos Corvalán, da OMS, frisou o interesse global pelo arranjo brasileiro. “A apresentação recente na conferência global de clima e saúde, em Brasília, mostrou o potencial da vigilância popular. Em um cenário de restrições de financiamento, trabalhar diretamente com comunidades afetadas pelos impactos climáticos é um caminho estratégico e o Brasil pode irradiar essa experiência.”

Em nome dos movimentos sociais, Graciela Stornini (MST/RS) definiu o momento como “honra e grande desafio”. “Reabrimos questões duras do nosso tempo porque acreditamos no caminho construído junto, e nos cobramos para estar à altura dele.”

Paulo Gadelha destacou a vigilância popular em saúde como um processo fundador de uma novidade que expressa um acúmulo importante. “Ela organiza uma ecologia de saberes, aproxima a academia dos territórios e transforma mobilização social em política pública. A crise climática é uma crise sanitária. A saúde é o argumento que evidencia a urgência porque toca a vida concreta das pessoas e revela os determinantes sociais. Impressiona a velocidade com que o tema vem sendo incorporado e valorizado no SUS e no plano internacional, com a OMS e o Ministério da Saúde, integrando pesquisa, experimentação e ação política em uma mesma direção”, afirmou Gadelha.

Momentos estratégicos da pesquisa e a escuta que orienta o processo de elaboração do Guia

Após a  primeira oficina de fevereiro de 2025, que alinhou agendas de pesquisa, gestão e participação social, foi realizada as etapas de campo nos territórios com os extremos climáticos. Na sequência, a equipe de pesquisa participou de mais quatro momentos estratégicos associados a um dos possíveis legado da pesquisa para a governança no tema relacionada as instituições envolvidas.

O primeiro momento foi em julho de 2025, na Conferência Global de Clima e Saúde em Brasília, evento oficial preparatório para a COP 30, organizado por OMS, OPAS e Ministério da Saúde, onde a experiência brasileira de Vigilância Popular em Saúde voltada às emergências climáticas foi selecionada para o IdeaLabs e apresentada como inovação replicável que articula SUS, territórios e resposta a eventos extremos. “Nossa experiência foi apresentada na Conferência Global. Fomos ao IdeaLabs, onde se discutem práticas que podem orientar ações frente a emergências climáticas. Da seca no Sertão, com Teka Potiguara, às inundações no Rio Grande do Sul, com Graciela Gachi Stornini, fizemos uma fala integrada articulada com a produção de conhecimento em parceria com as pesquisadores populares mobilizando mentes e corações na defesa da vida”, resumiu Fernando Carneiro.



Na sequência, num segundo momento, foi realizada um reunião de escuta para aprimoramento do guia, em 12 de agosto de 2025, através da paltaforma Teams, que contou com 28 participantes e alinhou expectativas e prioridades a partir de dois territórios emblemáticos, Aldeia Mundo Novo no Ceará com a pesquisadora popular indígena Teka Potiguara e Assentamento Santa Rita de Cássia II do MST em, Nova Santa Rita no Rio Grande do Sul, com a pesquisadora popular Graciela Stornini de Almeida. Emancipação e participação social apareceram como conceitos centrais, sinalizando o foco no protagonismo comunitário e na transformação social. O grupo também refinou linguagem e método, com preferência por arte de leitura universal sem perder o lastro territorial, com destaque para abordagens como a cartografia social e o  mapeamento participativo e a ênfase na produção de dados compartilhados, fortalecendo o diálogo entre comunidade, SUS e academia.



Em seguida, no dia 15 de agosto, Fernando Carneiro participou de um dia de trabalho com o GT de Vigilância Popular em Saúde da Secretaria de Vigilância em Saúde e Ambiente do Ministério da Saúde em Brasília, onde foi possível aprofundar o debate teórico e metodológico que envolve a Vigilância Participativa articulado aos objetivos da Política Nacional de Vigilância em Saúde.



Poucos dias depois, em 23 de agosto de 2025, por iniciativa da Presidência da Fiocruz em articulação com o Gabinete do Ministro da Saúde, dirigentes das duas instituições se reuniram para tratar da vigilância popular em saúde e da relação com os movimentos sociais. O encontro foi estratégico para fortalecer a governança do tema na Fiocruz e no SUS, com definição de papéis, fluxos de colaboração e diretrizes para a fase de implementação em território.



Guia em construção: o que muda

Ao longo da 2ª Oficina Nacional, no dia 26 de agosto, os participantes validaram achados da 1ª oficina, revisaram contexto, estrutura e diretrizes do Guia e pactuaram próximos passos: prazos, responsabilidades e arranjos de implementação em territórios do Ceará e do Rio Grande do Sul. A programação combinou apresentação dialogada, debates temáticos e avaliação final. Uma dinâmica coletiva inaugurou o trabalho: por QR Code, os presentes definiram, em até três palavras, “Vigilância popular em saúde, para mim, é…”, gerando uma nuvem de conceitos que orientou as discussões.

O Guia nasce para ser instrumento prático: orientar protocolos de escuta e alerta comunitário, rotinas de resposta local a secas e enchentes, articulação entre equipes de saúde, defesas civis e fomento a realização de ações emancipatórias com protagonismo popular de vigilância popular, além de padrões de registro que alimentem a vigilância oficial sem apagar especificidades dos territórios.

A potência da Vigilância Popular frente ao atual contexto brasileiro e internacional

Fernando Carneiro (Fiocruz) ressaltou como a vigilância popular tem ganhado acúmulo, densidade e escala no Brasil. “Ela condensa uma ecologia de saberes e o trabalho com os movimentos sociais e comunitários que a Fiocruz faz há décadas. O surpreendente é a velocidade com que esse processo vem sendo reconhecido e incorporado: Ministério da Saúde, OMS e o SUS estão juntos na avaliação do potencial dessa estratégia, que integra pesquisa, experiência, mobilização social e política pública.”Para ele, a crise climática, que também é “uma crise sanitária”, exige que a saúde assuma protagonismo na agenda climática. “A saúde traduz a urgência porque toca a vida concreta das pessoas e evidencia sua determinação social.

Próximos passos

A pesquisa conduzida pelo Participatório em Saúde e Ecologia de Saberes/Fiocruz Ceará e a Coordenação de Vigilância em Saúde e Laboratórios de Referência tem apontado estratégias de como a vigilância popular pode fortalecer o SUS diante de emergências climáticas em contextos de secas e enchentes. Após a consolidação das contribuições desta 2ª oficina, a equipe técnica fará a versão ajustada do Guia, a ser testada e finalizada com parceiros institucionais, movimentos sociais e comunidades indígenas dos territórios participantes. Já existe uma intenção do Ministério da Saúde em reproduzir o futuro guia em ampla escala. Em setembro e outubro de 2025 os resultados da pesquisa serão compartilhados em um encontro da Alliance for Healht Policy anda System Research da OMS na Etiópia e do G-STIC (Comunidade Global de Tecnologia e Inovação Sustentável/Agenda 2030) na África do Sul respectivamente. Serão boas oportunidades para contribuir no processo de internacionalização e aprimoramento do Guia de Vigilância Popular em Saúde.

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