Dissertação analisa características inovadoras de experiências em saúde cadastradas no SERPOVOS

Oficina territorial do SERPOVOS com a equipe de saúde da UBS Baixio das Palmeiras. A experiência desenvolvida pelo grupo foi uma das analisadas na pesquisa de mestrado de Renata Castelo.

Quem acompanha o SERPOVOS, sabe que as Populações do Campo, da Floresta e das Águas (PCFA) vivem uma realidade de desigualdade social no acesso à saúde, e que a pesquisa-ação nasceu com o intuito de conhecer e disseminar experiências positivas de cuidado em saúde desenvolvidas por essas populações e pela Estratégia Saúde da Família junto a elas. 

No âmbito da pesquisa, uma das perguntas a serem respondidas era que características inovadoras essas experiências continham. Através de trabalho apresentado ao Mestrado Profissional em Saúde da Família da Rede Nordeste em Saúde da Família da Fiocruz Ceará, a pesquisadora Renata Castelo contribuiu com esse diagnóstico. Renata desenvolveu uma pesquisa de caráter exploratório descritivo com abordagem quantitativa, analisando duas experiências cadastradas no SERPOVOS, e comparando as percepções sobre a execução dos serviços da Atenção Primária em cada local.

As experiências analisadas foram a da produção de óleo de coco agroecológico realizada por jovens da comunidade Sítio Coqueiro, em Itapipoca, e o “Jardim Medicial: Ancestralidade e Saber Popular na Autonomia do Cuidado no Território”, desenvolvida pelas trabalhadoras e trabalhadores da Estratégia Saúde da Família (ESF) da Unidade Básica Baixio das Palmeiras, no Crato. 

A dissertação de Renata teve orientação e coorientação, respectivamente, das pesquisadoras da Fiocruz Ceará Ana Cláudia Teixeira, que também integra o SERPOVOS, e Vanira Pessoa, que coordena a pesquisa-ação. 

“A pesquisa, ao elucidar como as experiências inovadoras de cuidado em saúde são desenvolvidas, mostra os caminhos que foram trilhados, ao tempo em que revela as lacunas que ainda existem na organização do cuidado por parte da ESF voltado para as necessidades das PCFA. Desse modo, a pesquisa pode inspirar o debate em torno do direito à saúde das PCFA, bem como subsidiar as discussões em relação às possibilidades de melhoria das práticas da Atenção Primária à Saúde junto a essas populações”, afirma a professora orientadora Ana Cláudia. 

De branco, ao centro, a pesquisadora Renata Castelo entrega certificado de participação na oficina territorial do SERPOVOS na comunidade Sítio dos Coqueiros, em Itapipoca. A experiência em saúde da comunidade também foi analisada em sua dissertação de mestrado.

Na entrevista abaixo, com a pesquisadora Renata Castelo, aprofundamos alguns aspectos sobre as experiências inovadoras em saúde:

SERPOVOS: Renata, a sua pesquisa teve como foco a análise de experiências inovadoras de cuidado em saúde em territórios das Populações do Campo, da Floresta e das Águas no Ceará. Queria primeiro que você nos ajudasse a entender que compreensão sobre inovação em saúde existe hoje dentro do SUS, e que discussão você levanta na sua dissertação. 

Renata Castelo: Quanto a isso, eu acho que é um processo que está em construção, porque a gente vem de uma prática em saúde baseada no modelo biomédico hegemônico com foco na assistência. O paciente chega na Unidade de Saúde, ou em qualquer ponto da rede de atenção do SUS, e ele vai buscar ali o atendimento e a medicação para resolver o problema dele. E o trabalhador da saúde, por sua vez, fica muito preso ao atendimento, às metas que tem que ser atingidas, ao quantitativo de pacientes que foram atendidos, à prescrição de medicamentos, que muitas vezes também não resolvem o problema do paciente. Por quê? Porque o indivíduo tem que ser visto no local onde ele está inserido, com as condições em que ele está inserido. 

Dentro da Saúde Coletiva existe a discussão da necessidade de um olhar ampliado da saúde, que vá muito além da questão da saúde biológica. Envolve a saúde ambiental, envolve a saúde do trabalhador – com as atividades que ele realiza ali no seu ambiente -, envolve as condições de vida, de renda, de lazer desse paciente, que são o que a gente chama de determinantes sociais de saúde. Então, a inovação vem exatamente daí. No SERPOVOS a gente entende que essa inovação vai resultar muito da prática da Ecologia de Saberes, que seria exatamente o diálogo entre os conhecimentos científicos que os profissionais da saúde adquirem nas suas áreas de formação, com os conhecimentos populares, aqueles que são transmitidos de geração a geração, que as populações realizam nos seus ambientes e de acordo com as singularidades dos seus territórios. Então, a inovação no cuidado em saúde ela não é uma coisa protocolizada. Ela surge a partir de experiências cotidianas. 

Quanto ao que é levantado na minha pesquisa, a grande questão foi exatamente saber quais são as características de experiências inovadoras que vêm sendo desenvolvidas. No nosso caso, a gente focou numa experiência desenvolvida por uma comunidade do campo, e outra desenvolvida por uma equipe da Estratégia Saúde da Família que lida com população de campo e floresta.

Então a gente buscou as características dessas experiências, relacionando-as aos parâmetros da Atenção Primária à Saúde (APS) e aos parâmetros da inovação. Os parâmetros da APS são aqueles que estão definidos na Política Nacional de Atenção Básica (PNAB): acesso e acolhimento; integralidade; longitudinalidade; coordenação do cuidado; centralização na família; orientação comunitária; organização, gestão e educação para os serviços; além da produção compartilhada do cuidado. 

Quanto aos parâmetros de inovação relacionados ao cuidado em saúde, a gente vai verificar na pesquisa: se a abordagem é centrada no território; como a ESF se relaciona com as especificidades das PCFA; e se são utilizados mecanismos de educação, informação e comunicação em saúde. A partir dessas informações, a gente comparou a visão da comunidade e dos trabalhadores da saúde sobre a realização desses parâmetros.

Durante as oficinas territoriais do SERPOVOS, os participantes das experiências cadastradas analisaram como o SUS pode inovar no cuidado em saúde das PCFA.

SERPOVOS: Que inovações nas práticas em saúde você identificou nas experiências analisadas, e como elas têm sido importantes no cuidado dessas populações? 

Renata Castelo: A experiência de produção do óleo de coco agroecológico realizada pela comunidade Sítio Coqueiro, em Itapipoca, é uma experiência inovadora por ser baseada na promoção de saúde praticada pela própria comunidade, e por relacionar a saúde com diversos fatores: com o trabalho, com a renda, com a valorização dos saberes populares. Ela é inovadora também no sentido do empoderamento dessa comunidade. Com o protagonismo de mulheres e jovens, através da prática agroecológica, eles defendem seu território produzindo alimentação saudável, que é um fator fundamental na manutenção da saúde. Ela também é inovadora porque destaca a intersetorialidade através de parcerias com instituições governamentais, movimentos e organizações sociais para aprimorar e comercializar os produtos derivados do coco. E é inovadora também por unir saúde e ambiente, abrangendo fatores que vão além da questão da assistência à saúde, o que demonstra o aspecto da integralidade do cuidado do indivíduo.

Quanto à experiência Jardim Medicinal, realizada por trabalhadores de saúde da UBS Baixio das Palmeiras, do Crato, ela é considerada inovadora por ser uma Prática Integrativa de Cuidado em Saúde (PICS) que está inserida nos serviços dessa UBS. Com ações de promoção da saúde através do uso de plantas medicinais, ela inova ao integrar conhecimentos científicos e populares e ao incorporar conhecimentos ancestrais sobre os benefícios dessas plantas. Além do que ela é inovadora no sentido até de suprir eventuais carências de medicamentos no serviço da farmácia da UBS. A manutenção do Jardim Medicinal na UBS tem sido uma forma também de integração entre profissionais da saúde e usuários que se envolvem com a experiência. A população atendida pela equipe de saúde da unidade aderiu ao uso de fitoterápicos e plantas medicinais, inclusive através do cultivo dessas hortaliças em seus domicílios. A experiência, portanto, envolve humanização do atendimento, com o processo de diálogo, escuta, acolhimento e fortalecimento das potencialidades do território e das pessoas que vivem nele.  

Então, considerando que essas populações em questão são em geral vulnerabilizadas e invisibilizadas, essas práticas de cuidado são importantíssimas. A partir do momento em que se estabelece a integração entre equipe de saúde e usuários através da ecologia de saberes, a gente percebe o fortalecimento de vínculos, o que favorece demais o cuidado em saúde dessas populações. A questão do empoderamento que a gente vê nessas duas experiências também é muito importante para que tenham a dimensão de que a matéria-prima para manutenção da saúde muitas vezes está ali à mão, disponível, e que através da valorização dos conhecimentos populares, elas podem, sim, cuidar e manter a saúde. 

SERPOVOS: Que ensinamentos essa pesquisa lhe possibilitou e que vão reverberar na sua atuação como profissional da ESF, ainda que seja no contexto urbano, diferente do contexto rural, onde estão as PCFA?

Renata Castelo: Eu acho que ficou claro pra mim que se faz necessário uma maior aproximação da ESF com o território, no sentido de promover uma saúde mais pautada para as necessidades locais, que são originadas inclusive pelo próprio contexto de vida e trabalho. 

Outra lição é que a aprendizagem mútua deve ser um exercício contínuo. A horizontalidade do saber aproxima os diferentes, e ela evidencia a necessidade de uma construção coletiva da saúde, de uma maior humanização por parte da ESF,  a busca por uma equidade maior pra essas populações mais vulneráveis. Que elas sejam ouvidas em suas necessidades e em seus modos de cuidar, porque isso vai melhorar bastante a qualidade de vida tanto dos usuários, como dos trabalhadores. Inclusive motivando a ação dos profissionais além da assistência, e facilitando, ao mesmo tempo, a autonomia no cuidado por parte da população.

Apesar do território onde eu atuo como profissional do SUS ser uma área urbana, a gente observa muitas vezes que são comunidades também tradicionais, muito ligadas ao ambiente, ao território, e às peculiaridades do seu território. Muitas das dificuldades que foram evidenciadas no contexto das PCFA, a gente também vê na zona urbana, como a dificuldade de acesso à renda, ao trabalho e à própria saúde. Acresceria aí também a questão da violência. Então eu percebo dificuldades que são muito semelhantes. E até a necessidade de mais humanização e escuta por parte das equipes de saúde. Porque muitas vezes, esses usuários chegam à Unidade Básica com um problema que é muito maior, que se somatiza numa dor física, algo de fundo emocional. Daí a importância da gente ter conhecimento da realidade dessas pessoas. A importância da escuta, da criação do vínculo, e, especialmente, de ações integrais além da assistência, ações que estimulem a promoção da saúde. E, principalmente, para incentivar o empoderamento dessa população no seu autocuidado. 

Então, a inovação é uma ferramenta fundamental em qualquer Unidade Básica de Saúde, em qualquer ponto de atenção da rede do SUS, pra que a gente possa realmente ter um sistema que dê respostas mais positivas na produção da saúde.

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A dissertação de mestrado de Renata Castelo está disponível na nossa biblioteca. É só clicar no link: Dissertação “Experiências Inovadoras de Cuidado em Saúde em Territórios das PCFA do Ceará” (Renata Castelo) – SERPOVOS – Saúde, Cuidado e Ecologia de Saberes (fiocruz.br)

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