Pesquisadora da saúde usa a literatura para contar histórias de vida de pescadoras e agricultores

Aquarela de Teresa Queirós para a publicação Narrativas de Vida (Acervo: Divulgação/Narrativas de Vida)

Para contar sobre a realidade de vida, trabalho e acesso à saúde de populações do campo e das águas, a psicóloga e pesquisadora em saúde e educação Maria Idalice Barbosa decidiu que era preciso apostar em outras formas de comunicação que ultrapassassem as barreiras e a aridez da linguagem científica. “Estou convicta de que a linguagem literária é uma forma apropriada não somente para comunicar, mas também para traduzir um fenômeno que é vivo e pulsante”, afirma Idalice.

A publicação Narrativas de Vida nasce desta convicção. É um dos produtos de seu pós-doutorado em saúde, em que inova em pesquisa ao propor um processo criativo de análise e síntese do material empírico de pesquisa. A inovação está em ir além de categorizar ideias, como amplamente é feito em um modelo clássico de pesquisas.

As histórias narradas são frutos de entrevistas de História de Vida e de Grupo Focal realizadas por Idalice no âmbito da pesquisa “Produção de Indicadores para Avaliação das condições de vida das famílias e acesso aos serviços de Atenção Primária em Territórios do Litoral e do Sertão do Ceará e do Rio Grande do Norte”, coordenada pela pesquisadora da Fiocruz Ceará Vanira Matos Pessoa.

Em Narrativas de Vida, as leitoras e os leitores vão poder mergulhar nas memórias da agricultora Vera e de sua família na Fazenda Salgado, em Apodi. Nesta história o leitor percebe um transcorrer de tempo ao longo de gerações que não acompanha as mudanças históricas no que se refere a direitos e acesso à saúde.

Já na história dos pescadores artesanais em Icapuí nos deparamos com um modo de viver e de se relacionar com o mar e os instrumentos de pesca eternizados em sua luta, não apenas por sobrevivência, mas por preservação de um modo de existir humano, a partir da trajetória do casal Zé e Maria.

E nas histórias das marisqueiras de Fortim, vemos que algo pode ser olhado, sentido e até degustado sem ser visto, em função de uma invisibilidade ancorada em uma miríade de pré-conceitos. Além destas, Idalice recupera a história dos quatro jangadeiros cearenses – eternizados em gravações de um filme inacabado do diretor estadunidense Orson Welles – que lutaram por direitos trabalhistas na década de 1940. O intuito foi transversalizar o tempo histórico de seu material de pesquisa para evidenciar as transformações e imobilidades do processo de trabalho e luta por direitos de pescadores e pescadoras artesanais nordestinos em um percurso histórico de 80 anos, interligando acontecimentos da metade do século passado com o momento presente, transcorridos 20 anos do século XXI.

Retratos de vidas reais que refletem diferentes gerações atravessadas pelo histórico de injustiças e desigualdades socioeconômicas do país. Nesse contexto, a publicação de Idalice traz à tona os impedimentos que esses povos tiveram e ainda têm de usufruir integralmente do direito básico à saúde, e inova em termos metodológicos tornando, não apenas mais acessível seus resultados de pesquisa, mas utilizando uma sensibilidade inerente ao modo de perceber humano e humanizante.

Segundo Idalice Barbosa, uma das questões centrais encontradas no processo de pesquisa é o desconhecimento por parte das equipes de saúde sobre os modos de vida dessas populações que moram no sertão e no litoral, e as implicações desses modos de vida para a saúde. É o exemplo da realidade de trabalho das marisqueiras, com uma rotina que muitas vezes acarreta problemas como dores na coluna e tendinites nas mãos por movimentos repetitivos, e infecções ou intoxicações por contaminação das águas onde pescam, além de outras. A invisibilidade sobre esses problemas é algo que precisa ser rompido para que o Estado atue sobre as reais demandas em saúde desses povos.

Idalice também chama a atenção para a necessidade do SUS valorizar os saberes desses povos, sendo estes fundamentais para a promoção da saúde e a prevenção e tratamento das doenças, entendendo que estão contextualizados a sua realidade.

Apostando na transformação desses registros de pesquisa em narrativas literárias, Idalice quer com a publicação transportar o leitor e a leitora para esse universo que provavelmente não é o dele e o dela. Por isso mesmo, o uso da literatura tem o intuito de aproximar, criar identificação, sensibilidade, empatia e humanidade.

Para a autora, um dos momentos mais marcantes do trabalho foi quando viajou para a comunidade de Fortim para compartilhar com as marisqueiras o produto final da pesquisa. Ao ler a narrativa “As Marisqueiras de Batom”, pôde observar os sorrisos e os rostos surpresos ao se verem retratadas na história e se apropriarem dela para dar visibilidade ao invisível do seu fazer.

As histórias narradas também ganharam uma síntese gráfica: ilustrações em aquarela da também psicóloga e artesã Teresa Queirós. Idalice explica que “as aquarelas de Teresa introduzem o leitor em cada história, sensibilizando por meio do belo, descortinando um cenário que permanece o mesmo para poder ser re-visto pela imaginação criativa, em que a beleza comove e traduz com precisão o que as palavras, em seu limite vocabular, não expressam em significado”.

A pesquisa que deu origem à publicação teve como parceiros a Cáritas Diocesana de Crateús, a Articulação Nacional das Pescadoras, o Sindicato dos Trabalhadores e das Trabalhadoras Rurais de Apodi/RN, o Sindicato dos pescadores e pescadoras artesanais, marisqueiras e trabalhadoras e trabalhadores da pesca artesanal de Icapuí, a Colônia de Pescadores e Pescadoras Artesanais Z-58 de Novo Oriente/CE, o Conselho Pastoral dos Pescadores e a Universidade Estadual do Rio Grande do Norte.

Para ler Narrativas de Vida, é só clicar no link abaixo. A publicação está disponível para consulta e download na biblioteca virtual do SERPOVOS.

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