Impacto da Covid-19 em populações do campo, floresta e águas
Comunidades indígenas, quilombolas, caiçaras, extrativistas, pescadoras, acampadas e tantas outras populações que vivem no campo, floresta e águas estão, historicamente, na luta por seus territórios e pelo direito à saúde em sintonia e harmonia com o ambiente em que vivem. Com a chegada da pandemia de Covid-19 no Brasil, novas formas de violências e de resistências no campo, floresta a águas foram percebidas através do monitoramento do Centro de Documentação Dom Tomas Balduíno, da Comissão Pastoral da Terra (CPT).
Diante da pandemia, as comunidades do campo, floresta e águas se organizaram com diversas ações realizar a autodefesa dos territórios que apresentamos abaixo. A partir dos registros da CPT foi possível identificar ações de Vigilância Popular em Saúde realizadas por diversas comunidades do país, incluindo barreiras sanitárias, quarentenas, campanhas e um aplicativo de monitoramento comunitário.
E, por meio da análise de dados disponibilizados pelo Governo Federal, buscamos localizar e quantificar o impacto da Pandemia de Covid-19 nas populações do campo, floresta e águas.
Este estudo é parte da pesquisa Impacto da Pandemia de COVID 19 nas Populações do Campo, Floresta e das Águas do Brasil realizada em 2022 pela FIOCRUZ. A pesquisa desenvolveu quatro atividades e aqui apresentamos os resultados da Atividade 4 sobre a análise de populações expostas e vulneráveis aos impactos da Covid-19 em municípios rurais e áreas remotas e as capacidades de respostas do SUS. Esta atividade esteve sob responsabilidade do Participatório em Saúde e Vigilância Popular, tendo sido realizada pela Cooperativa EITA com coordenação de Fernando Carneiro.
Vigilância Popular em Saúde: como as comunidades se organizaram na pandemia de Covid-19
A partir do ano de 2020, com a chegada da pandemia de Covid-19 no Brasil, novas formas de violências e de resistências no campo foram percebidas através do monitoramento do Centro de Documentação Dom Tomas Balduíno, da CPT. Dado o contexto de uma nova dinâmica dos conflitos, foi necessário pensar em como se registrar essas novas ações. A avaliação naquele momento também era de que aquelas ações poderiam não ter continuação nos anos seguintes, dada a incerteza que se instaurou durante aquele contexto.
Uma dessas novas formas de ações que se destacaram no contexto da pandemia foram as barreiras sanitárias. Diversas comunidades realizaram bloqueios nas estradas de acesso aos seus territórios, impedindo a circulação de pessoas externas à estas comunidades. Muitas das vezes esses sujeitos externos são na verdade invasores, que costumam adentrar os territórios com intenções de explorar as águas e a terra, do território em questão, em benefício próprio.
Nessas condições, o registro de barreiras sanitária no banco de dados da CPT seguiu as seguintes orientações:
- Registrou-se o nome barreira sanitária nos casos em que a comunidade realizou algum bloqueio ou controle de quem entrava e saía da comunidade.
- Os casos de barreira sanitária foram computados enquanto conflitos quando havia clara omissão do Estado em realizar o controle sanitário e também em casos que, diante dessa omissão, havia denúncias de sujeitos tentando invadir o território em que existia uma auto-organização do povo para bloquear o acesso de terceiros.
Quando registrado quantitativamente (como conflito), a barreira sanitária é contabilizada como uma violência e não como uma resistência.
Estas escolhas foram feitas sob o seguinte critério: não alterar as violências e resistências que vinham sendo registradas historicamente, pois era vista como uma situação esporádica, momentânea.
Houve a compreensão de que a barreira sanitária, enquanto resistência, não se encaixaria nas formas de registro de manifestações de luta, ao mesmo tempo que registrá-la como ação de resistência implicaria em abrir uma nova forma se somaria aos conflitos, tal como acampamentos e ocupações e retomadas, podendo gerar uma anomalia na série histórica. Dado o contexto de incertezas gerados pela pandemia, optou-se por não expandir para essa nova forma de registro
Por outro lado, o que ficou claro é que as barreiras sanitárias eram uma forma do povo de resistir à algumas violências concretas e que já eram registradas e denunciadas desde os primórdios da CPT, tais como as invasões, pistolagens, grilagem, destruição de casas, intimidações, ameaças de morte. O que também fica claro é que esses povos estavam a mercê da ação de grileiros, fazendeiros, garimpeiros e mesmo turistas (sobretudo em comunidades caiçaras litorâneas, tal como a comunidade de Trindade, em Paraty, Rio de Janeiro).
Houve barreiras criadas por prefeitura para impedir que indígenas circulassem pela cidade e o Ministério Público Federal se manifestou contrário à ação do governo municipal. Ou ainda, barreira criada pela comunidade e que a prefeitura usou a polícia para desmontar, sendo que tempos depois o governo municipal auxiliou na organização da barreira como forma de proteger a comunidade.
Os registros da CPT evidenciaram o precário atendimento de saúde pública e recuo do Estado no período da pandemia: falta de capacitação para agentes de saúde sobre a COVID-19, falta de médicas/os, casos de enfermeiras/os que levam o COVID-19 para comunidades, entre outros.
Importante também a denúncia sobre invisibilidade de indígenas em contextos urbanos nos dados sobre a COVID-19, uma vez que não foram considerados e representam 36% da população indígena.
A renda das comunidades do campo, floresta e águas reduziu no período da pandemia: para quem vive do artesanato ou da venda da produção da comunidade, o distanciamento e as barreiras impediram o escoamento. E, ao buscar o Auxílio Emergencial, havia o risco de contaminação no retorno para a comunidade.
Muitos saberes desapareceram com as mortes de pessoas idosas ocorridas nas comunidades.
As ações de Vigilância Popular em Saúde, oriundas dos registros da CPT, são fruto de uma decisão metodológica desta organização em criar uma forma de quantificar ações sem que impactasse de forma incisiva a série histórica de registro quantitativo – pelo nome do conflito -, mas que por ser uma forma de organização de resistências das comunidades também fossem registrada qualitativamente, em textos de ocorrências e que se realizasse a coleta e guarda da documentação referente a estes casos.
Barreiras sanitárias nos registros da CPT
Os registros da CPT evidenciam diversas estratégias de proteção dos território realizadas por comunidades do campo, floresta e águas durante a pandemia de COVID-19.
Uma das ações foram as barreiras sanitárias. A partir dos registros da CPT, é possível identificar contextos territoriais de precário acesso das comunidades a direitos de saúde, moradia, segurança: Territórios ameaçados por garimpeiros, madeireiros, traficantes; em áreas limítrofes de plantio com agrotóxicos; junto de centros urbanos, em locais de turismo, de grandes empreendimentos que não pararam atividades, como frigoríficos que registraram explosão de casos de COVID-19.
Os registros da CPT também evidenciaram o precário atendimento de saúde pública e recuo do Estado no período da pandemia: falta de capacitação para agentes de saúde sobre a COVID-19, falta de médicas/os, casos de enfermeiras/os que levam o COVID-19 para comunidades, entre outros.
Formas de Funcionamento das Barreiras
Outras ações realizadas
Al
Publicações
Estudo sobre a morbimortalidade da COVID-19: análise de diferenças sócio regionais
Este estudo faz parte do projeto “Impacto da Pandemia de COVID 19 nas Populações do Campo, Floresta e das Águas do Brasil”, desenvolvido pela Fiocruz. O objetivo inicial do projeto era localizar e quantificar o impacto da Pandemia de COVID 19 nas populações do campo, floresta e águas. No entanto, os dados sobre saúde disponibilizados pelas agências governamentais não possuem uma dimensão que nos permita identificar diretamente o número de casos, agravamentos e óbitos ocorridos nos grupos populacionais em questão.
Por sua vez, a partir dos dados do Cadastro Único para Programas Sociais do Governo Federal – CadÚnico1, é possível identificar o número de pessoas cadastradas que fazem parte de grupos populacionais tradicionais e específicos2, que estão relacionadas com as populações do campo, floresta e das águas. Além disso, existem variáveis que identificam famílias indígenas e quilombolas. Considerando os dados de maio de 2024, o contingente nesses grupos populacionais tradicionais, famílias indígenas e quilombolas corresponde a 10,6 milhões de pessoas, que equivalem a 11% das pessoas do CadÚnico.
Dentro do universo referente a esses grupos tradicionais, famílias indígenas e quilombolas, verificamos uma predominância de pessoas negras3, com aproximadamente 77%, e 7% de pessoas indígenas. Em relação à situação dos domicílios, 69% das pessoas estão em domicílios rurais. Por fim, em relação ao grau de instrução escolar, 61% das pessoas possuem escolaridade declarada como “Sem Instrução” ou “Ensino Fundamental Incompleto”, enquanto apenas 1% está com escolaridade “Superior incompleto ou mais”.
Sendo assim, foram realizadas análises considerando dimensões que permitem nos aproximar do objetivo da pesquisa, tais quais a tipologia rural-urbana do município em que o paciente reside, raça/cor e grau de escolaridade.
Sendo assim, o estudo foi dividido em duas partes. Para a primeira parte, foram analisados os dados referentes aos casos e óbitos por COVID, disponibilizados pelo Ministério da Saúde. Nessa parte foram calculados indicadores referentes à incidência, letalidade e mortalidade, para cada uma das cinco categorias de acordo com a tipologia rural-urbana dos municípios.
Na segunda parte, foi utilizado o Banco de Dados de Síndrome Respiratória Aguda Grave – SRAG, que é gerido pela Secretaria de Vigilância em Saúde e Ambiente, vinculada ao Ministério da Saúde. Nessa segunda parte o principal indicador analisado foi a letalidade acumulada por SRAG-COVID. Um aspecto importante dessa base é que existe a informação da idade de cada caso ocorrido. Dessa forma, foi possível separar os casos de SRAG-COVID por faixa etária. Por se tratar de uma doença cuja letalidade varia muito com a idade, sempre foi adotada a segregação por faixa etária para cada forma de categorização utilizada. Além da tipologia rural-urbana, foram analisadas diferenças por macrorregião, raça/cor e nível de escolaridade.
Parte 1 – Análise da incidência, letalidade e mortalidade por COVID-19, de acordo com a tipologia rural-urbana dos municípios.
Para essa parte do estudo, foram analisados os dados referentes aos casos e óbitos por COVID, disponibilizados pelo Ministério da Saúde (https://covid.saude.gov.br/). A data de referência adotada foi o dia 31/12/2022, portanto foram utilizados os valores de óbitos e casos acumulados nessa data. Os dados disponíveis nessa base estão detalhados por município. Portanto, foi possível agrupar os municípios em 5 categorias, conforme indicado na publicação “Classificação e caracterização dos espaços rurais e urbanos do Brasil : uma primeira aproximação” (IBGE, 2017). Na própria base utilizada, também está disponível a população de cada disponível, referente ao ano de 2019. Dessa forma foi possível calcular indicadores referentes à incidência (número de casos por habitantes), letalidade (número de óbitos por número de casos) e mortalidade (número de óbitos por habitantes), para cada uma das cinco categorias de acordo com a tipologia rural-urbana dos municípios.
Parte 2 – Análise da letalidade acumulada por SRAG-COVID-19
Para a segunda parte do estudo, foi utilizado o Banco de Dados de Síndrome Respiratória Aguda Grave – SRAG, referentes aos anos de 2020 (SRAG-2020), 2021 e 2022 (srag-2021-e-2022). Essa base é gerida pela Secretaria de Vigilância em Saúde e Ambiente, vinculada ao Ministério da Saúde, e a notificação dos casos de SRAG é compulsória em casos de hospitalização ou óbito por síndromes respiratórias. Nela são disponibilizados os microdados referentes a cada caso, contemplando mais de 150 dimensões, desde aspectos relacionados à saúde até aspectos sociais, como escolaridade, raça/cor, município de residência e faixa etária.
O principal indicador analisado foi a letalidade acumulada por SRAG-COVID (número de óbitos por número de casos de SRAG-COVID ocorridos em determinado período). O período adotado foi de 2020 a 2022, ou seja, casos cujos primeiros sintomas ocorreram entre 1o de janeiro de 2020 e 31 de dezembro de 2022.
Referências
IBGE, 2017. Classificação e caracterização dos espaços rurais e urbanos do Brasil : uma primeira aproximação / IBGE, Coordenação de Geografia, Rio de Janeiro: 2017.
1 Obtidas a partir do CECAD 2.0 (https://cecad.cidadania.gov.br/tab_cad.php), referente ao mês de maio de 2024.
2 Foram selecionados os seguintes grupos: 201-Familia Extrativista, 202-Familia de Pescadores Artesanais, 203-Familia Pertencente a Comunidade de Terreiro, 204-Familia Ribeirinha, 205-Familia Agricultores Familiares, 301-Familia Assentada da Reforma Agraria, 302-Familia Beneficiaria do Programa Nacional do Credito Fundiario, 303-Familia Acampada e 304-Familia Atingida por Empreendimentos de Infraestrutura.
3 Raça/cor declarada como parda ou preta.