Bem viver x mineração: a luta de comunidades camponesas por vida saudável em Quiterianópolis
O que caracteriza o bem viver? Como o equatoriano Alberto Acosta nos conta em seu livro “O Bem Viver: uma oportunidade para imaginar outros mundos”, o termo nasceu com os povos originários da América Latina e foi recuperado para pensar em saídas para a crise civilizatória global. Não há uma definição acabada sobre como deva ser, mas tem como essência a compreensão de que é impossível combinar progresso e sobrevivência para falar de presente, tampouco de futuro.
Muitas dessas saídas compreendidas dentro do conceito do bem viver são encontradas em diversas comunidades tradicionais neste vasto chão latinoamericano, e também acham correspondência em outras partes do mundo, como no continente africano. Seus modos de vida estão em sintonia com a natureza e as relações sociais se estabelecem em favor da coletividade. Mas o progresso que se instituiu como uma exigência do mundo capitalista se impõe nesses territórios ameaçando a identidade, a memória e a sobrevivência de seus povos.
Essa realidade faz parte da história das comunidades de Monteiro, Bandarro e Besouro, encravadas no vale do Rio Poty, no sertão cearense dos Inhamuns, município de Quiterianópolis. Desde 2011, a saúde da população, da fauna e da flora local – intimamente ligada à saúde do Rio – tem sido profundamente afetada pela exploração de ferro realizada pela empresa mineradora Globest. E para enfrentar essa ameaça, as comunidades empenham uma luta em defesa da vida.
A experiência “O Bem Viver versus a mineração: defesa da terra, da água e da produção de alimentos saudáveis” foi cadastrada na pesquisa-ação SERPOVOS pelo Movimento pela Soberania Popular na Mineração – MAM no Ceará. O MAM, junto com outros movimentos, entidades e organizações, tem apoiado as comunidades na luta contra os impactos da mineração.
Pesquisa-ação no território
O anfitrião da equipe de pesquisa-ação no território foi Erivan Silva, militante do MAM e profundo conhecedor da realidade da região. A visita aconteceu ao longo de toda a quinta-feira, dia 03 de novembro, e a primeira parada foi na comunidade de Bandarro, na casa de seu Pedro Mota.
Reunidos no alpendre, a equipe ouviu Pedro e Erivan narrarem como a empresa havia chegado sem aviso e dado início a uma série de transtornos para a população local. As máquinas levantaram poeira e provocaram rachaduras nas casas; os resíduos da extração de ferro poluíram o ar, a água e a produção de alimentos, causando doenças respiratórias e de pele.
Do alpendre de Pedro, a equipe foi guiada pelo território para conhecer outros moradores, suas casas e quintais produtivos. Na comunidade de Monteiro, o grupo visitou dona Verônica Gomes. Sua casa fica às margens do Poty, e em seu quintal produtivo há uma produção diversificada. Junto com o marido e o filho, ela planta cheiro-verde, feijão, milho, batata, macaxeira, pimenta, mamão, siriguela, caju, manga e muito mais.
No percurso pelas comunidades, uma quebra na paisagem. Foi possível avistar à distância o local da extração de minério de ferro. Uma grande estrutura fincada na Serra do Besouro; antes coberta pela mata verde, hoje cor marrom de terra à mostra, devastada. Não se pode chegar perto.
Nas duas primeiras imagens, registros da visita da equipe ao quintal de dona Verônica. Na terceira, registro enviado no cadastro da experiência mostrando a fartura dos quintais produtivos das comunidades. A última imagem é da estrutura da mineradora avistada da estrada pela equipe de pesquisa (Foto: Acervo SERPOVOS)
À tarde, na igreja de Bandarro, a equipe se encontrou com agricultoras, agricultores, lideranças comunitárias, integrantes das associações de moradores e de movimentos e organizações parceiras para a realização da oficina territorial da pesquisa-ação.
Após a rodada de apresentações, um momento para explicar por que a pesquisa está sendo desenvolvida e como o SERPOVOS tem atuado. Em seguida, foi feita a dinâmica das estações. Através dela, assim como nas oficinas anteriores, o intuito foi promover reflexão e debate sobre a experiência cadastrada, sobre as concepções de saúde do grupo, sobre a qualidade do serviço ao qual as comunidades têm acesso e de que formas seria possível inovar para garantir à população local o direito integral à saúde.
Para o grupo participante da oficina, a experiência do bem viver no território contra a mineração carrega em si a luta pela saúde, uma vez que busca barrar a contaminação do ar, da água, dos alimentos, e faz do próprio modo de vida camponês a estratégia maior de proteção da natureza e das pessoas. A mobilização comunitária também é compreendida como uma contribuição da experiência para a saúde da população, demonstrando o entendimento profundo do que é saúde e o quão importante é a dimensão dos laços sociais.
Quando o foco do debate são os serviços de saúde no território, as ausências chamam atenção. Apesar das comunidades de Monteiro e Bandarro contarem com Unidades Básicas de Saúde, faltam profissionais e medicamentos para atender as demandas. Entre a população local há um alto índice de pessoas com pressão alta que dependem de medicamentos específicos. Os agentes comunitários fazem visitas com intervalos que chegam a 3 meses, e quando alguém precisa de atendimento especializado, o encaminhamento é feito pelo clínico geral da UBS, mas a consulta pode demorar até mais de ano.
Mas o ponto mais sensível em relação à Atenção Primária à Saúde tem a ver com a própria atividade mineradora. Segundo as comunidades, a Secretaria de Saúde do município nunca averiguou os problemas relatados pelos moradores após a Globest dar início à extração de ferro, dentre eles doenças respiratórias e casos de câncer.
Seu Neto Pereira, da comunidade de Bandarro, desenvolveu um câncer de garganta. A tosse constante começou após os trabalhos da mineradora, e não havia como se esconder da poeira. Ele dizia que o seu adoecimento era em decorrência da mineração. Faleceu em 2021 sem conseguir comprovar a causa.
Dinâmica das estações durante a oficina territorial (Foto: Acervo SERPOVOS)
O distanciamento e a falta de diálogo das equipes de saúde com as comunidades sobre os impactos ocasionados pela extração de ferro constatam que o direito à saúde da população camponesa de Bandarro, Besouro e Monteiro está sendo violado. Durante a oficina, dialogando sobre saídas para enfrentar o problema, os participantes reforçaram o papel da articulação popular: organizar as comunidades para buscar diálogo com profissionais e com os gestores de saúde e pressionar por melhorias no atendimento e por um mutirão no território para analisar os casos de doença associados à mineração.
Essas demandas e anseios foram representados em desenhos na grande saia de tecido que percorreu os diferentes territórios por onde o SERPOVOS foi convocado a estar através dos cadastros de experiências em saúde. Além dos desenhos dos participantes, o debate ganhou vida na conversa desenhada de Ricardo Wagner, que tão bem narra as principais questões que surgem nas oficinas territoriais.
Na primeira imagem, Ricardo Wagner em ação. Na segunda, o resultado final da conversa desenhada
(Foto: Acervo SERPOVOS)
Participaram da oficina: os moradores e moradoras do território Manoel Lauro, (agricultor), Ana Paula (agricultora), Silvia Macedo (professora e agricultora), Verônica Gomes (agricultora), Oscar Macedo (agricultor), Raimundo Pereira (agricultor), Antônia Fábia (presidenta da Associação de Moradores de Besouro), Pedro Mota (presidente da Associação de Moradores do Bandarro), João Silva (Associação de Bandarro e STTR de Quiterianópolis), Vicente Fernandes, Ranieli Silva (Pastoral da Juventude Rural) e Emanuel Gomes; os parceiros Erivan Silva, do MAM, e Cecília Paiva, do Escritório de Direitos Humanos Frei Tito de Alencar; e do grupo de pesquisa-ação, o pesquisador André Moura, as pesquisadoras Graça Viana e Andressa Braz, o arte-educador e ilustrador Ricardo Wagner e a coordenadora Vanira Pessoa.
Conhecendo a experiência
Ter o Rio Poty como vizinho é um privilégio para quem vive num clima exclusivamente semiárido, na região com o menor volume de chuvas do Ceará. As 350 famílias das comunidades de Bandarro, Monteiro e Besouro tem na agricultura e na pecuária sua subsistência, e o rio permite aos camponeses ribeirinhos água em abundância para beber, plantar e cuidar de animais.
Nas palavras de Erivan no cadastro da experiência na pesquisa-ação é possível compreender essa relação intrínseca entre o rio e a vida desses povos: “Qualquer diálogo relacionado aos aspectos culturais, econômicos, políticos, produtivos, espirituais, ambientais, festivos, entre outros, o rio aparece como elemento transversal na vida dos camponeses. Os próprios caminhos entre as casas margeiam ou atravessam as vertentes do Poty, entrelaçando o quintal das casas com os caminhos que chegam até os pomares e roçados dos camponeses”.
Ou seja, ali o bem viver se caracteriza na relação de cuidado mútuo entre os povos e o rio Poty. Os primeiros, no respeito à natureza, e o segundo, na fonte de vida que oferece aos seres habitantes ao seu redor.
Em 2011, a empresa Globest se instalou na região e deu início à exploração do minério de ferro. A mineração modificou a paisagem através do desmatamento e da escavação do solo e subsolo. A pilha de rejeitos da extração, localizada a 300 metros do Poty, provocou o assoreamento do rio, a diminuição e a contaminação das águas com os resíduos de minério. E já que é do Poty que a população se abastece, a água contaminada adoeceu o povo, os bichos e os alimentos.
O impacto devastador na saúde mobilizou as comunidades em defesa de seu território e seus modos de vida contra a invasão da mineradora Globest. Associações comunitárias e outros grupos locais organizados contaram com o apoio de parceiros e aliados externos. Uma série de atividades foram realizadas: reuniões para planejar ações de enfrentamento, rodas de conversa para construir táticas organizativas, visitas e intercâmbios para conhecer outras localidades impactadas pela mineração, levantamento de informações sobre os danos da mineração no território. Essas ações possibilitaram a realização de audiências públicas e de uma Assembleia Popular da Mineração com a presença de representantes da empresa mineradora.
Desse esforço coletivo, a comprovação dos impactos e crimes socioambientais cometidos pela Globest permitiu a pressão aos órgãos ambientais do Estado e o embargo da extração e do beneficiamento do minério de ferro em dezembro de 2017. A luta segue pelo fechamento definitivo da mina e pela reparação dos danos coletivos e individuais que ainda persistem sobre as comunidades.
A pedido da Assembleia Legislativa do Estado do Ceará em parceria com a Secretaria Estadual do Meio Ambiente, a Fundação Núcleo de Tecnologia e Qualidade Industrial do Ceará (Nutec) produziu estudos de análise da composição química da água, do solo e dos sedimentos do Poty e do Açude Flor do Campo, que é abastecido pelo rio e local de subsistência de pescadores artesanais de comunidades vizinhas. Foram identificados uma série de metais pesados em valores acima do permitido pelo Conselho Nacional do Meio Ambiente (CONAMA), dentre eles arsênio e antimônio, identificados como cancerígenos.
A atuação dos gestores de saúde do município demonstra descaso com os problemas enfrentados pelas comunidades em decorrência da mineração de ferro, como revelaram os moradores durante a oficina territorial da pesquisa-ação.
Após audiência pública em maio de 2019, a articulação em defesa das comunidades apresentou proposta para que a SESA desenvolvesse estudos sobre a relação da mineração com os casos de doença registrados entre os moradores. Só em 2021 foi construído um plano de ação junto com entidades, movimentos e a Fiocruz Ceará.
A experiência de defesa do território teve o envolvimento das famílias camponesas das três comunidades, do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Quiterianópolis, da Paróquia de Quiterianópolis, do Movimento pela Soberania Popular na Mineração – MAM, do Escritório de Direitos humanos Frei Tito de Alencar, da Área Pastoral Sul, da Comissão Pastoral da Terra, da Colônia de Pescadores de Novo Oriente, do Departamento de Geografia da Universidade Federal do Ceará (UFC), da Casa da Geografia da Universidade Estadual Vale do Acaraú (UEVA), da Comissão de Direitos Humanos e Meio Ambiente da Assembleia Legislativa do Ceará, do Movimento dos Trabalhadores/as Rurais Sem Terras (MST), da Cáritas Diocesana de Crateús e da Fiocruz Ceará. Também contou com a atuação do Ministério Público Federal, Ministério Público Estadual e Defensoria Pública da União.
>>> Para entender mais o contexto dessas comunidades, indicamos o vídeo “Sertão dos Inhamuns: Mineração e Destruição” e a dissertação de mestrado em Geografia de Erivan Silva, “A geopolítica do saque mineral: conflitos e impactos socioambientais da mineração de ferro em Quiterianópolis-CE”.