Araruta e a força do vínculo entre cultura alimentar, saúde e saberes tradicionais em Vieira dos Carlos

Direito à terra e à saúde fazem parte do histórico de lutas da comunidade Vieira dos Carlos relembrados durante a oficina da pesquisa-ação no território (Foto: Acervo SERPOVOS)

A memória pode ser revolucionária. Lembrar de todo o processo de luta pela garantia da terra permite aos moradores de Vieira dos Carlos valorizar o esforço que tiveram no passado. A comunidade é uma das quatro que formam o Assentamento Várzea do Mundaú, no Trairi. Ali vivem agricultores familiares, camponesas e trabalhadores rurais.

Recuperar a história coletiva é também um mecanismo poderoso para estar atento ao presente, e de olhos bem abertos para o futuro. O tempo passa, e a memória transferida de geração em geração é o que permite manter uma comunidade ligada às suas raízes. É assim com o histórico de lutas, é assim também com os saberes e os modos de vida; e foi dessa forma que Breno Veríssimo soube pela avó Joana (conhecida como Téta) da existência da araruta. Uma planta que é parte da história da cultura alimentar de Vieira dos Carlos e que estava praticamente esquecida pela comunidade.

Ararutando: Valorizando Saberes Ancestrais é a experiência em saúde cadastrada por moradores de Vieira dos Carlos, que tem a ver com a retomada do plantio da araruta e com a valorização da cultura alimentar tradicional dos agricultores e camponeses do território.

Pesquisa-ação no território

Integrantes da equipe de pesquisa-ação conhecendo o quintal de Breno Veríssimo
(Foto: Acervo SERPOVOS)

A equipe do SERPOVOS chegou em Vieira dos Carlos na sexta-feira, dia 02 de setembro. O primeiro momento foi na companhia de Breno, o responsável pelo cadastro da experiência com a araruta na pesquisa-ação. Uma conversa inicial para ambientar as pesquisadoras e pesquisadores e relatar sobre as condições de vida e saúde da comunidade.

Em seguida, uma visita aos quintais produtivos agroecológicos de dona Tica e de seu Zé Júlio. Fartura de encher os olhos: diversos tipos de plantas medicinais, frutas, macaxeira e outras culturas. Os dois também trabalham na produção de queijo, cajuína, mel, urucum, colorau, e na criação de animais, como galinha e pato. Essa produção alimenta a comunidade e é comercializada nas Feiras Agroecológicas organizadas pelo CETRA – Centro de Estudos do Trabalho e Assessoria ao Trabalhador e a Trabalhadora. A organização social atua com a comunidade na formação e na assistência rural por meio da agroecologia.

O sábado, 03 de setembro, foi o dia reservado à oficina territorial da pesquisa. Ela aconteceu na sede da Associação dos Agricultores Familiares do Assentamento Várzea do Mundaú (Assafam) e foi conduzida pela equipe do SERPOVOS.

Em plenário realizou-se uma rodada de apresentações e um diálogo breve sobre a pesquisa-ação, o direito à saúde e a saúde dos povos do Campo, Floresta e Águas (PCFA). Dando seguimento, foi feita uma dinâmica. Os participantes foram organizados em pequenos grupos e percorreram, em forma de rodízio, cinco estações. De estação em estação, eles responderam as perguntas relacionadas à experiência com a araruta e a promoção da saúde, sobre inovação em saúde, cuidado em saúde na Estratégia Saúde da Família e do Sistema Único de Saúde (SUS) no território. 

Momento da dinâmica das estações durante a oficina territorial (Foto: Acervo SERPOVOS)

Muitas questões vieram à tona provocadas por essa dinâmica. A produção e o consumo de alimentos agroecológicos foram enfatizados como fonte de saúde e de qualidade de vida pela comunidade. André reforçou o quanto isso foi perceptível durante os dias de vivência em Vieira dos Carlos.

A araruta apareceu no diálogo como um símbolo da cultura alimentar, associada à promoção da saúde e à valorização das características e dos modos de vida ali cultivados. O alimento que faz parte da ancestralidade do povo de Vieira dos Carlos, e estava esquecido, é o mobilizador atual do retorno às origens e elemento de valorização da própria história e dos saberes tradicionais. É também a esperança de elo entre as gerações, no desejo de que Breno não seja o único jovem interessado na araruta, nos quintais produtivos, na agroecologia e na defesa da terra conquistada pelos mais velhos. A participação de muitos idosos deixou evidente o choque geracional e os desafios da sucessão rural. Chamou atenção também a participação majoritária de homens.

Não só o que se come define saúde para a comunidade. Compreendendo o quanto a natureza oferece saúde, voltam às atenções e o cuidado para que ela também esteja saudável. Outro aspecto citado foi a importância do bem estar social para evitar os riscos à saúde mental, como depressão e ansiedade.

Sobre o SUS no território, muitas fragilidades foram apontadas, como carência de serviços e estrutura, a exemplo da falta de transporte de apoio para a população, uma demanda antiga da comunidade. Vieira dos Carlos tem uma Unidade Básica de Saúde, que foi construída depois da luta persistente dos moradores. Atualmente a demanda é grande e a equipe pequena para dar conta do Assentamento e de localidades vizinhas. Relataram que atualmente o posto está sem médico, mas avaliaram positivamente a qualidade e a regularidade das visitas domiciliares dos Agentes Comunitários.

Apesar disso, sentem a limitação do diálogo dos profissionais com a comunidade. Dessa forma, questões relacionadas aos impactos das atividades produtivas na saúde dos moradores não são trabalhadas pela Atenção Primária no território. Questão central quando tratamos da saúde dos PCFA. Reivindicam que o SUS precisa caminhar junto com os saberes da medicina natural para garantir saúde de qualidade na comunidade, já que durante muito tempo foi da natureza que encontraram os remédios para curar diferentes enfermidades. Por fim, eles têm consciência sobre o sucateamento do SUS e sobre os impactos disso à saúde das populações do campo.

Para Vanira Pessoa, coordenadora da pesquisa-ação, a comunidade revelou um profundo conhecimento de sua história, um intenso processo de luta por políticas públicas e um senso crítico apurado sobre o que diz respeito ao território e a realidade brasileira.

Depois da discussão, os participantes representaram em desenhos os promotores de saúde em Vieira dos Carlos no espaço branco da saia de tecido do SERPOVOS. A saia segue viagem com a equipe, e a cada parada um mosaico das experiências em saúde dos povos do campo, da floresta e das águas pelo Ceará vai ganhando vida.

E, claro, a oficina foi acompanhada pela escuta atenta do ilustrador e arte-educador Ricardo Wagner, que sistematizou tudo em papel, tinta e canetinha na já famosa conversa desenhada.

Conversa desenha da oficina territorial produzida pelo ilustrador Ricardo Wagner (Foto: Acervo SERPOVOS)

Participaram da oficina os moradores e moradoras da comunidade Vieira dos Carlos: Breno Veríssimo, Gecília Veríssimo, Francisca Ferreira, Chico Teixeira, Evandro Ferreira, José Júlio Rodrigues, Sérgio Veríssimo, Benedito Teixeira, Maria do Livramento Batista, José Cardeon e Francisca Menezes. Do grupo de pesquisa-ação, estiveram presentes os pesquisadores André Moura e Ana Cláudia Teixeira, o arte-educador e ilustrador Ricardo Wagner, e a coordenadora Vanira Pessoa.

Conhecendo a experiência

No quintal de casa, Breno Veríssimo mostra ao grupo de pesquisa-ação o rizoma da araruta, planta que faz parte da história da cultura alimentar da comunidade Vieira dos Carlos (Foto: Acervo SERPOVOS)

Em outros tempos, a araruta já foi uma planta popular no Ceará. De seu caule ou rizoma – que fica sob a terra – é produzida uma farinha, rica em amido e fibras, que tem vários usos na culinária e propriedades medicinais. Na comunidade Vieira dos Carlos, era habitual o uso da araruta para fazer mingau para crianças e enfermos. No entanto, o alimento foi perdendo espaço para produtos industrializados, como as massas prontas e o amido de milho, e sendo, aos poucos, esquecido.

Algo de tanto valor cultural e nutricional para a comunidade, e completamente desconhecido para a geração de Breno Veríssimo, deixou ele curioso por mais informações após provar o mingau de araruta na casa de sua avó Téta. Foi até a casa de tia Janica e lá pôde ver pela primeira vez a cara da planta. Colheu alguns rizomas e levou para cultivar no seu quintal.

Breno se formou em agronomia na Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab), e hoje trabalha na comunidade e integra o GT de Juventudes da Rede de Agricultores e Agricultoras Agroecológicas e Solidárias dos Vales do Curu e Aracatiaçu. Profundamente identificado com sua terra e interessado na cultura alimentar, a araruta foi para ele um achado.

Semanas depois desse acontecimento, a Escola de Gastronomia Social Ivens Dias Branco lançou um edital para a seleção de projetos de pesquisa com produtos da cultura alimentar cearense e Breno não teve dúvida: a araruta se encaixava perfeitamente. Um alimento típico da sua comunidade, intimamente relacionado aos saberes ancestrais e à história da cultura alimentar do território. Breno apostou na oportunidade de valorizar a araruta entre as novas gerações e de levá-la de volta às mesas de Vieira dos Carlos. O seu projeto foi selecionado. A partir dele, vários alimentos da comunidade, além da araruta, foram ganhando novamente importância entre a população.

Os saberes da comunidade sobre o plantio e o beneficiamento da planta foram registrados pela pesquisa de Breno. A tia Maria Tomé foi mentora e colaboradora da pesquisa, contribuindo com as técnicas de beneficiamento. Da terra indígena Tremembé da Barra do Mundaú, próximo ao assentamento, Estevão ajudou nas informações sobre o cultivo e a colheita. Vários materiais de comunicação foram produzidos e divulgados entre os moradores a partir deste processo. Dentre eles um ebook de receitas que envolveu outros cultivos encontrados nos agroecossistemas familiares de Vieira dos Carlos.

O redescobrimento da araruta e de seus benefícios teve impacto importante na alimentação de algumas crianças da comunidade com dificuldade de digestão, intolerância a outros tipos de massa e alergia ao glúten. A farinha produzida da planta comprovou ser um alimento saboroso e de fácil digestão com a qual as crianças se deram bem. Foi mais um estímulo para dar continuidade às pesquisas sobre as propriedades da araruta, além de um grande incentivo para planejar uma produção em maior escala para comercialização do produto. Com a ajuda do CETRA, a comunidade tem articulado formas de viabilizar esse plano.

Os caminhos estão abertos. A sensibilidade e interesse de Breno ganhou dimensão política importante para a comunidade. Refletir sobre a produção de alimentos, os hábitos de consumo e a perda de tradições foi a chave para que as gerações mais antigas se atentassem ao distanciamento dos mais jovens das questões comunitárias. Envolvê-los representa a sucessão rural para a defesa da terra que conquistaram e a valorização de sua história e modos de vida.

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