A experiência que salva vidas nos assentamentos do MST no Ceará

Oficina prática sobre Covid-19 com foco na prevenção. Atividade realizada no assentamento Conceição Bonfim, em Santana do Acaraú (Crédito: Acervo do curso livre em Agentes Populares de Saúde do Campo-CE)

Quando a Covid-19 começou a chegar no interior do Ceará, o Movimento das Trabalhadoras e dos Trabalhadores Rurais Sem Terra mobilizou a militância através do seu Setor de Saúde para pensar em estratégias de proteção contra o vírus. A rápida articulação foi motivada por uma realidade que a pandemia deixou ainda mais evidente: a fragilidade do SUS nos territórios rurais. Para as famílias que vivem em cerca de 200 assentamentos do MST no Estado, era preciso agir por conta própria. 

É nesse contexto que o Setor de Saúde do MST articula, a partir de julho de 2020, a formação dos Agentes Populares de Saúde do Campo. Um curso organizado em três ciclos, com aulas online e ações práticas nos assentamentos, em parceria com a Rede Nacional de Médicas e Médicos Populares. A formação focou em conteúdos específicos para a compreensão sobre a Covid e as consequências da pandemia; para a apropriação sobre o SUS e os direitos que se relacionam diretamente com a saúde, como o direito à água, à soberania alimentar e à terra; e para o aprofundamento das dimensões pedagógicas da formação. 

Os agentes se tornaram referência sobre a Covid em seus assentamentos, mobilizando ações educativas, barreiras sanitárias, distribuindo máscaras e monitorando pessoas com sintomas da doença. Quando era necessária alguma orientação médica, eles acionavam uma equipe de plantão da Rede de Médicos Populares. 

Os Agentes Populares de Saúde do Campo são agricultoras e agricultores organizados no MST, com perfil de liderança comunitária, e com interesse e alguma experiência na área da saúde. Fagna Sousa, do assentamento Vida Nova/Aragão, no município de Miraíma, é uma delas. 

Fagna Sousa ministrando atividade em seu assentamento Vida Nova/Aragão, através do curso de formação de Agentes Populares de Saúde do Campo (Crédito: Acervo do curso livre em Agentes Populares de Saúde do Campo-CE)

A primeira experiência de Fagna com a área da saúde foi no curso de multiplicadores da ONG Casa Lilás, chamado Prevenindo e Ajudando a Prevenir. A ação era voltada para jovens, e o curso abordava temas como gravidez na adolescência, drogas e violência contra a mulher. Já no MST, alguns anos depois, se formou na área da educação e cursou, a partir de 2019, a especialização em Educação Popular e Promoção de Territórios Saudáveis na Convivência com o Semiárido, coordenada pela Fiocruz Ceará. Hoje, Fagna integra o Conselho Municipal de Saúde e colabora com as populações dos assentamentos debatendo sobre as políticas de saúde local. O território de Fagna sente as consequências da fragilidade do SUS: 

“O desafio maior neste momento é a falta do Agente Comunitário de Saúde. Estamos há vários anos sem este profissional, que é o grande elo entre nós e a equipe de Saúde da Família. O município vem há vários anos sem fazer a seleção para esta categoria. Bem como o desfinanciamento do SUS pelo governo federal, causando uma fragmentação [da Atenção à Saúde] sem igual aos territórios”.

Além da ausência de profissionais, outra barreira se coloca sobre o direito à saúde para as populações do campo: as práticas de saúde não são pensadas em diálogo com as pessoas e o contexto em que vivem. Ao invés disso, o que chega é uma saúde baseada na realidade urbana. Essa observação é algo que inquieta a médica e pesquisadora Ana Paula Dias. Ela é uma das responsáveis pela formação dos Agentes Populares de Saúde do Campo, integra o Setor de Saúde do MST, é militante da Rede Nacional de Médicas e Médicos Populares, e aluna do mestrado profissional em Políticas Públicas em Saúde pelo Programa de Pós Graduação da Escola de Governo da Fiocruz Brasília. Seu trabalho de dissertação trata justamente da iniciativa de formação dos agentes. 

(Crédito: Acervo do curso livre em Agentes Populares de Saúde do Campo-CE)

A partir do acúmulo de experiência de trabalho no Semiárido, Ana Paula identificou quantas lacunas o sistema de saúde tem junto às populações rurais. No enfrentamento à Covid, além de períodos de total ausência das equipes de saúde, somada a longas distâncias que separam algumas comunidades das Unidades Básicas, a informação sobre a pandemia não dialogava com o contexto rural. 

No início da pandemia tinha muito essa coisa de que era uma doença da cidade, que não era do campo, porque ninguém falava de capacete, de trator, de enxada. ‘Então é porque isso não tem no interior, só tem na cidade’ (era a conclusão). Então a gente teve esse cuidado de falar da realidade deles; como faz proteção aqui [no campo]”, afirma Ana Paula. Nesse sentido, “a experiência dos agentes coloca muito claro a necessidade de pensar a política pública a partir do território, e a partir desses povos, que tem o seu modo inclusive de compreender a saúde e a doença, que não é o nosso. Se a gente não olhar pelo viés de quem está no território, não rola”, argumenta. 

Somando todos os assentamentos, o MST Ceará registrou 28 óbitos por Covid. A maioria das mortes aconteceu durante transferências de pacientes em unidades de atendimento na espera por leitos. Metade das vítimas eram idosos, além de pessoas de outras faixas etárias que se encaixavam em grupos de maior risco. As ações gerais orientadas pelo Setor de Saúde foram essenciais para o controle dos casos e mortes, mas foi nos assentamentos com a presença do Agente Popular de Saúde do Campo que as ações contra a pandemia foram melhor estruturadas e tiveram maior adesão. A experiência tem trazido aprendizados importantes, como demonstra Fagna:

“Uma das questões que o curso tem trazido para a comunidade é o entendimento da importância da saúde como um pilar da organização comunitária. A importância do fortalecimento das práticas comunitárias em saúde, o cultivo da agricultura diversificada, alimentação saudável, plantas medicinais como ações que promovem saúde”.

Oficina para utilização do sistema de informação “Agentes do Campo” no Assentamento Vida Nova, em Canindé (Crédito: Acervo do curso livre em Agentes Populares de Saúde do Campo-CE)

O curso formou 35 agentes, em 9 assentamentos e 2 acampamentos de 6 municípios: Miraíma, Amontada, Santa Quitéria, Santana do Acaraú, Crateús e Canindé. A formação entra agora numa nova etapa. Os agentes vão fazer uso de um aplicativo para coleta de dados, desenvolvido por Fernando Paixão, colega de mestrado de Ana Paula. O processo foi feito junto com a turma de agentes, que definiu que perguntas, termos, linguagem e aparência o aplicativo teria. 

A partir do acompanhamento em seus territórios, os agentes vão coletar informações para fazer diagnósticos sobre a saúde local. Com os dados será possível pensar em estratégias específicas de acordo com a demanda de cada território. A coleta vai possibilitar, sobretudo, que o grupo tenha um retrato da pandemia em seus assentamentos. O sistema de saúde do Estado não tem informações sobre a Covid-19 nos territórios rurais.

A experiência da formação dos e das Agentes Populares de Saúde do Campo está contribuindo para que as comunidades se apropriem do debate sobre o direito à saúde e possam reivindicar um SUS que também seja para os povos do campo.

Para acompanhar o trabalho dos Agentes Populares de Saúde do Campo – Ceará, é só seguir o perfil @agentespopularescampoce no Instagram.

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