Ciência em comunhão com a luta indígena pelo direito à saúde
A maneira como produzimos, compartilhamos e fazemos uso do conhecimento científico revela muito sobre as condições de vida que criamos em nossas sociedades. Valores morais, éticos e concepções de mundo não estão na ciência, mas em quem faz ciência e para quê se faz ciência. Se desejamos que nosso mundo esteja organizado de forma mais justa, então uma das tarefas do agora é aprender a fazer e fortalecer uma ciência que enxergue essas realidades pelas lentes da promoção da vida.
É essa concepção de saber científico que mobiliza os diferentes sujeitos articulados na iniciativa SERPOVOS, realizada pela Fiocruz Ceará; e um dos seus objetivos é produzir conhecimento em comunhão com a luta indígena pela garantia do direito à saúde. Para dialogar sobre esse assunto e o trabalho que vem sendo desenvolvido com os movimentos Potygatapuia, Movimento Indígena Tabajara da Serra das Matas e Movimento Potyguara – todos do Território Indígena da Serra das Matas, no Ceará – foi organizado o seminário “Compartilhamento de saberes, vivências e experiências em saúde indígena no sertão”. A atividade aconteceu nos dias 17 e 18 de janeiro, em encontro online.
Foram convidadas a liderança dos movimentos Potyguara e Potygatapuia da Serra das Matas Teka Potyguara, o agente de controle de endemias e militante do Movimento Indígena Tabajara da Serra das Matas Elvis Aroerê Tabajara, e os pesquisadores e professores da Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz Marina Farsanello e Marcelo Firpo, ambos coordenadores do Núcleo Ecologias, Epistemologias e Promoção Emancipatória da Saúde (Neepes/ENSP/Fiocruz).
Descolonizando a ciência através das epistemologias do Sul
O professor Marcelo Firpo compartilhou a memória da aproximação do campo da saúde coletiva com os movimentos por justiça ambiental nos anos 1990; e a partir dos anos 2000, com os estudos pós-coloniais. Deles emerge o conceito da ecologia de saberes, proposto pelo sociólogo Boaventura de Sousa Santos, e compreendido no âmbito das epistemologias do sul.
O sul aqui não é geográfico. Ele representa territórios e povos que foram submetidos ao projeto de dominação europeia de caráter colonialista, capitalista e patriarcal, que resistiram e se insurgiram à tentativa voraz de apagamento de suas experiências e modos de vida, e que preservaram ou construíram novos saberes e práticas na contracorrente. Ler o mundo através dessas epistemologias do sul global – onde estamos! – nos ajuda a ampliar as possibilidades de respostas às crises humana e ambiental que se impõem neste século.
Descolonizar a ciência seria, então, nas palavras de Firpo, criar redes colaborativas de pesquisa em que esses saberes e práticas confluam, se encontrem e caminhem juntas para encontrar alternativas emancipatórias.
Essas conexões estão no âmago da luta pelo direito à saúde, em especial para os povos indígenas e populações do campo, floresta e águas. O militante e agente de endemias Elvis Aroerê Tabajara, ensina que a saúde para o seu povo não se resume ao acesso ao médico e aos medicamentos. Preservar a Mãe Terra é condição essencial para a saúde, que por sua vez, depende da preservação dos seus saberes tradicionais. Para os indígenas, a tentativa de eliminar esses saberes equivale à eliminação da própria vida. Aroerê Tabajara fala do adoecimento mental de muitos parentes e do sofrimento com a perspectiva de futuro, de olho num histórico de exploração da natureza que em 500 anos não teve fim.
A liderança indígena Teka Potyguara explica que a saúde está em tudo, inclusive na forma de compreender e experimentar a vida comunitária. O cuidado em preservar os saberes tradicionais está tanto no esforço de reaprendizado das formas de fazer uma agricultura preservando a mata nativa, quanto na manutenção da língua original tupi nheengatu.
Teka também é pesquisadora e professora, e entende que juntar a ciência dos povos com o conhecimento científico acadêmico é um caminho que fortalece todos. Esta é a prática da ecologia de saberes. Esse diálogo entre saberes que se colocaram apartados (como opostos, em que um representaria a razão e o outro uma ideia de misticismo) só é possível quando os saberes se aproximam com o objetivo de gerar saúde.
Tecendo teoria e prática
O seminário sobre saúde indígena também se propôs a refletir sobre a produção de conhecimento a partir da pesquisa-ação pelas lentes da ecologia de saberes e da tradução intercultural, referências conceituais e metodológicas que guiam o SERPOVOS.
Para isso, foi feita uma mostra de produtos educacionais e de pesquisa para apreciação e validação: alguns resultados da pesquisa de dados secundários, com informações disponíveis sobre as condições de saúde e da estrutura do Subsistema de Saúde Indígena no território, apresentados por Graça Viana; informações dos territórios levantadas a partir do diálogo com troncos-velhos, lideranças indígenas, agentes indígenas de saneamento (AISAN), agentes indígenas de saúde (AIS), educadores, mulheres e jovens, que foram apresentadas por Iara Fraga; cartilhas/cadernos com o tema “Diálogo de Saberes para a saúde indígena no sertão do Ceará”, que trazem cartas e ilustrações produzidas pelos povos, material apresentado por Alissan Martins; e vídeos feitos por jovens indígenas da Serra das Matas por meio de oficinas de comunicação, apresentados por Iago Barreto.
No fortalecimento do fazer científico que promova dignidade humana, a coordenadora do Neepes Marina Fasanello frisou que a metodologia, ou seja, a forma de fazer, precisa ser registrada. É através deste ‘como fazer’ que vamos descolonizando a academia e a ciência, efetivando um processo de mudança profunda na estruturação do conhecimento.
Para tecer teoria com a prática, outras questões devem reverberar no processo de pesquisa-ação comprometido com os povos, como as indagações que Marcelo Firpo trouxe para a roda: quais conhecimentos científicos estão sendo acionados e para quais lutas? E quais são as condições para que a ecologia de saberes aconteça?
Próximos passos
O grupo de pesquisa-ação vai voltar à Serra das Matas para um novo encontro presencial, e para que as produções sejam avaliadas pelos movimentos indígenas que integram a iniciativa. Com a finalização das produções, o objetivo é que cada material seja instrumento de luta para a defesa do direito à saúde.
As ações fazem parte do projeto Identidades, Memórias e Práticas de Cuidados em Saúde: convivências ancestrais e os desafios atuais na defesa do direito à saúde e da vida em territórios indígenas no sertão do Ceará, realizado pela Fiocruz Ceará através do programa Inova, com apoio da Vice-Presidência de Pesquisa e Coleções Biológicas da Fundação Oswaldo Cruz. O projeto segue formalmente até março, mas a pesquisa científica comprometida com os povos continua!