Desafios do direito à saúde para os povos do campo, floresta e águas
O Sistema Único de Saúde (SUS) foi idealizado para que todas e todos os brasileiros tivessem acesso à saúde, independente de sua classe social, raça, etnia, gênero e território. Muita gente trabalhou e continua atuando para que o SUS possa ser esse sistema universal do tamanho do país, garantindo todas as condições e a qualidade dos serviços para que qualquer pessoa tenha assegurado esse direito essencial à vida.
Mas há uma série de decisões políticas que atingem diretamente a capacidade do SUS ser o que ele deveria em sua concepção. Uma das principais razões é o seu subfinanciamento. Os últimos governos federais têm reduzido a cada ano os investimentos na saúde. Como uma das causas, é só lembrar que em 2016, o Congresso Nacional aprovou a Emenda Constitucional 95, a famosa PEC do Teto de Gastos. Ela vai manter congelados os recursos públicos para áreas da seguridade social, como a saúde, até 2037.
Neste cenário de fragilização do SUS, alguns avanços necessários – que também dependem de investimentos – ficam comprometidos, como a capacidade de colocar em prática o que diz a Política Nacional de Saúde Integral das Populações do Campo, Floresta e Águas. Para esses povos, historicamente negados ou invisibilizados, o acesso à saúde de qualidade segue sendo uma dívida do estado brasileiro. Especialmente porque o Sistema de Saúde ainda não consegue sistematizar dados sobre as condições específicas de vida dessas populações e relacioná-las aos processos de saúde-doença.
Mara Tavares, enfermeira, trabalhadora do SUS e gestora do Centro Estadual de Referência em Saúde do Trabalhador (CEREST/CE), explica essa relação: “Essas populações têm sua diversidade e os determinantes sociais repercutem fortemente nas situações de vulnerabilidade, como a dificuldade de acesso à saúde, a má alimentação, a falta de saneamento básico e moradia digna. Convivem com a precariedade das condições de trabalho, com a exposição a agrotóxicos e outros riscos que podem agravar a saúde dessas pessoas”.
Trabalhadores adoecidos por conta da exposição aos agrotóxicos, como Mara citou, é uma realidade frequente no meio rural. Neila Santos, do Centro de Estudos do Trabalho e de Assessoria ao Trabalhador e à Trabalhadora (CETRA) – entidade que faz parte da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA) e da Articulação Semiárido Brasileiro (ASA) – observa que a falta de informação sobre o assunto contribui para a continuidade e agravamento dos casos: “A informação para as populações do campo geralmente chega por meio das entidades de assessoria técnica. Mas essas políticas, de assessoria e extensão rural, por exemplo, que antes orientavam os agricultores e agricultoras para um trabalho de produção agroecológica, foram reduzidas”. Uma série de ações como as citadas por Neila ficaram prejudicadas nos últimos anos pela desestruturação de programas fundamentais da Política Nacional de Convivência com o Semiárido.
Além do enfraquecimento das políticas públicas, os conflitos nos territórios onde vivem as populações do campo, da floresta e das águas têm se intensificado, já que são localidades de grande riqueza ambiental que atraem a atenção econômica de exploradores. Essa soma de violações atinge diretamente a saúde desses povos. “Os povos das águas compreendem saúde no sentido amplo, que é o de ter saúde no território. Se o território de vida e de trabalho estiver adoecido pelos impactos de grandes projetos, por exemplo, os pescadores e pescadoras artesanais vão senti-los e introjetá-los no seu corpo”, afirma a educadora popular Camila Batista. Ela trabalha no Conselho Pastoral dos Pescadores (CPP), entidade que já tem atuação há mais de 50 anos nos territórios tradicionais pesqueiros de várias regiões do Brasil. Pelo CPP Ceará, Camila acompanha de perto a realidade de pescadores e pescadoras artesanais do mar, dos rios e dos açudes.
Ela identifica que o maior desafio à saúde que enfrentam é garantir que o sistema e os serviços reconheçam os agravos ao ambiente como causadores de adoecimento para essas populações. A partir deste reconhecimento, a expectativa é de que haja uma conexão com as práticas e saberes de saúde que fazem parte da identidade cultural e social desses povos. “Eles e elas se apegam a essas práticas para poder fortalecer a luta contra os grandes agravos e às negações de direitos nesses territórios. Se apegam à espiritualidade, à reza, ao canto, às plantas medicinais, aos chás, à alimentação saudável”, complementa Camila.
Esse diálogo entre povos, trabalhadores da saúde, pesquisadores, movimentos sociais, entidades é o que propõe o SERPOVOS. Primeiro porque a participação é parte essencial da cidadania e o esforço coletivo é frutífero para enfrentar desafios. Segundo porque a iniciativa defende uma ciência que esteja viva na realidade desses povos e que seja exercida em prol da melhoria da sua qualidade de vida. Para Neila Santos, “uma pesquisa-ação como essa do SERPOVOS têm um significado extremamente importante para unir a comunidade às pesquisadoras e pesquisadores e às pessoas ligadas à Estratégia Saúde da Família, no sentido de identificar quais são problemas que essas populações enfrentam, e buscar soluções diretas para resolvê-los”.
Neila Santos, Camila Batista e Mara Teles fazem parte da Teia de Saberes e Práticas formada através da iniciativa SERPOVOS.